Autor: Nehemias Domingos de Melo

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo fazer um paralelo entre o direito a uma vida com dignidade e o direito a morrer com a mesma dignidade. Faremos também um estudo comparado com o direito de outras nações, atinente à mesma matéria. Iremos também questionar até onde vai o poder do Estado para tornar a vida de uma pessoa uma obrigação, impedindo que essa pessoa possa ter uma morte com dignidade. Por fim, abordaremos a falta de legislação no Brasil regulando essa matéria, bem como a iniciativa do Conselho Federal de Medicina tratando do testamento vital.


PALAVRAS-CHAVE: Vida. Morte. Dignidade. Direito. Eutanásia.

Revista de Publicação: Revista Brasileira de Direitos Humanos Nº 36 – Jan-Mar/2021 – Doutrina

 

Introdução – O Direito à Vida como Direito Humano Fundamental


O direito à vida é direito fundamental do ser humano. Protege-se a vida mesmo quando o seu titular tenta tirá-la. Esse direito é garantido em todas as legislações modernas do mundo, como razão da existência do ser humano com capacidade de fruir de todos os demais direitos, podendo-se até afirmar que sem proteção do direito à vida não haveria sentido proteger-se os outros demais direitos.

No nosso sistema jurídico, a proteção à vida tem status constitucional (CF, art. 5º, caput) e permeia todo o sistema normativo brasileiro, tanto no âmbito civil quanto penal, protegendo-se, inclusive, as tentativas contra a integridade física dos indivíduos [1].


Como doutrina Alexandre de Moraes, o direito à vida é o mais importante de todos os direitos, sendo ele direito fundamental, e constitui-se em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos constitucionalmente assegurados [2].


O direito à vida insere-se entre os direitos fundamentais da pessoa humana. É um direito natural por excelência que o Direito Positivo deve reconhecer e proteger. Hoje, é considerado um direito universal, estando positivado nas legislações constitucionais dos países, especialmente depois da proclamação dessa garantia no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), de 1948.


Na legislação de alguns países como o Brasil, essa proteção começa antes mesmo do nascimento. Nossa legislação protege o nascituro, como o embrião de uma vida e essa proteção se estende para até depois da morte do indivíduo, tendo em vista a proteção ao corpo morto e à própria honra do falecido.


Porém, o direito à vida não é absoluto, como de resto nenhum direito pode ser. Basta dizer que a legítima defesa excepciona essa proteção, pois em determinadas hipóteses a lei autoriza que alguém em defesa de sua própria vida possa tirar a vida de outra pessoa.

Quer dizer, em qualquer sistema jurídico não existe direito absoluto, pois do confronto entre duas garantias legais, o intérprete terá que relativizar uma para fazer valer a outra frente ao caso concreto.

Nesse cenário, a morte é parte de vida. Como preleciona a grande jurista Argentina Matilde Zavala de González, “la muerte propia y a la ajena son parte de la vida, en tanto la limitan, como en un camino que llega hasta determinado punto; y ese conocimiento sobre la inexorable mortalidad impregna de sentido los momentos vividos” [3]

Assim, se a morte é parte da vida e o direito à vida implica uma garantia de uma vida com dignidade, temos como corolário que o direito à vida digna não se resume ao nascer, ao manter-se vivo ou mesmo lutar pela continuação da vida, pois tal direito vai muito além, devendo-se, inclusive, respeitar a dignidade do direito de morrer [4].

Autores: Nehemias Domingos de Melo
Márcia Cardoso Simões

Sumário: 1. Notas introdutórias. 2. Dos tipos de tutelas provisórias: urgência e evidência. 3. Da eficácia e da mutabilidade das tutelas provisórias. 4. Dos poderes do juiz na efetivação das medidas. 5. Da motivação da decisão. 6. Da competência. 7. Conclusão. 8. Bibliografia.

1. Notas introdutórias

Por primeiro cabe destacar que as tutelas provisórias existem para atenuar os malefícios da longa duração do tramite processual. O ideal seria obter desde logo a tutela definitiva que contivesse um juízo de certeza, porém, “é inconcebível um processo que não se alongue no tempo” principalmente respeitando todas as garantias do devido processo legal.
O decurso do tempo processual traz prejuízos econômicos e morais às partes; afronta os princípios da efetividade e da celeridade processuais; contribui para a insegurança jurídica e pode ocasionar, inclusive, o perecimento do direito pleiteado, com o consequente fracasso do acesso à justiça.
Diante de efeitos tão danosos, é imprescindível uma solução, mesmo que paliativa, a qual consiste numa tutela provisória, que não resolve definitivamente a lide, mas atende, em parte, à efetividade da justiça, porque pode desde logo ser executada, ou seja, realizada no mundo dos fatos.
Podemos conceituar tutela provisória como uma decisão jurisdicional com as seguintes características: a) inaptidão para tornar-se imutável e indiscutível; b) representativa de cognição não exauriente; c) com eficácia imediata; d) revogável e modificável; e) tem sempre como referência a correspondente tutela definitiva; f) atende aos princípios processuais constitucionais da efetividade e da celeridade em prejuízo do princípio da segurança jurídica.
Por outro lado, as tutelas provisórias têm pronta eficácia. A grande vantagem das tutelas provisórias consiste na sua executoriedade imediata. Uma vez concedida, a decisão pode ser realizada no mundo dos fatos desde logo, mesmo na pendência de recurso. De forma geral, as tutelas provisórias são executadas provisoriamente (ver Novo CPC, art.297, parágrafo único).
As tutelas provisórias podem ser revogadas ou modificadas, de ofício ou a requerimento da parte, em qualquer momento processual, enquanto houver a busca para encontrar a solução definitiva para o direito em litígio.
As tutelas provisórias sempre estão relacionadas à tutela definitiva, que chamamos de principal. Afinal elas só existem porque a tutela principal exige o cumprimento minucioso de todo o procedimento traçado pela lei, com obediência ao contraditório e à ampla defesa, tarefa que demanda tempo, fator inimigo da efetividade e que pode trazer prejuízos às partes.
Em regra, as tutelas provisórias têm como objetivo direto preservar a utilidade da futura tutela definitiva ou evitar que o próprio direito objeto da ação pereça completamente antes da decisão final. Em ambos os casos, para obter a tutela provisória é imprescindível demonstrar a probabilidade de obter a solução definitiva para a lide. Logo, só é possível pensar em tutela provisória se tivermos em mente qual seria a tutela definitiva correspondente.
Por último, para que se compreenda em profundidade a natureza das tutelas provisórias é preciso identificar o conflito entre princípios constitucionais que o juízo no caso concreto tem sempre que enfrentar antes de conceder ou negar a tutela provisória.
A concessão da tutela provisória sempre significa atender ao princípio da efetividade e da celeridade processuais, em prejuízo do princípio da segurança jurídica, conforme passamos a explicar.
Já vimos que as medidas provisórias advêm de uma cognição superficial, não obstante, poderem ser executadas imediatamente, mesmo na pendência de recurso. De forma que se torna possível executar sem que se tenha certeza jurídica sobre o direito litigado.
Executar sem certeza vai de encontro ao princípio da segurança jurídica, expressado no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Apenas outro princípio do mesmo quilate pode justificar essa invasão da esfera jurídica de alguém sem o completo devido processo legal. Trata-se do princípio da efetividade da jurisdição, garantia decorrente da inafastabilidade da jurisdição, pois o direito de acesso à justiça compreende não apenas obter a solução jurídica ao caso concreto levado à juízo, mas igualmente o direito de ter realizado no mundo dos fatos a solução jurídica obtida.
Ensina Teori Albino Zavascki que “a forma para viabilizar a convivência entre a segurança jurídica e efetividade da jurisdição é a outorga de medidas de caráter provisório, que sejam aptas a superar as situações de risco de perecimento de qualquer um desses direitos”.
Não obstante, nem todas as tutelas provisórias envolvem situações de perigo, de risco ao direito em litígio. É o caso das tutelas de evidência previstas no artigo 311 do Novo CPC a ser estudado mais adiante.
O pressuposto das tutelas provisórias consiste em “circunstâncias de fato” que configurem um risco ou, pelo menos, um embaraço ao princípio da efetividade da jurisdição, que garante a entrega da tutela jurisdicional em tempo e em condições adequadas à preservação do bem da vida.
Nas tutelas provisórias de urgência a circunstância de fato deve significar um perigo, uma ameaça de perecimento do objeto do processo ou uma ameaça à utilidade/efetividade da decisão definitiva final do processo.
Já o embaraço ao princípio da efetividade e da celeridade prescinde da situação de perigo, mas configura um entrave à prestação da tutela jurisdicional em prazo razoável e com a celeridade e presteza exigidas pelo inciso LXXVII do art. 5º da Constituição Federal.
De qualquer modo, quando o julgador é chamado a decidir provisoriamente, ele deve enfrentar o dilema de decidir qual das garantias constitucionais fundamentais sairá vencedora em prejuízo da outra: segurança jurídica ou efetividade (e celeridade) da tutela jurisdicional? Trata-se, portanto, de um conflito de normas de segundo grau, para o qual não há solução preconcebida, cabendo ao juiz elaborar no caso concreto a regra conformadora entre os princípios que se afrontam.

2. Dos tipos de tutelas provisórias: urgência e evidência

Nos termos do art. 294 do Novo CPC, as tutelas provisórias podem ser de urgência ou de evidência, utilizando dois critérios para a classificação das medidas, senão vejamos.
Por primeiro, o Código classifica as tutelas provisórias pelo critério de existência de situação de perigo, quais sejam, em tutelas provisórias de urgência ou de evidência. Atentem para o fato de que a tutela provisória é gênero do qual são espécies a tutela de urgência e a tutela de evidência.
Já o segundo critério classificatório diz respeito ao momento processual escolhido pelo autor para requerer a medida. A tutela provisória terá caráter antecedente quando for requerida antes do requerimento da tutela definitiva. Neste caso, é a tutela provisória que primeiro estabelece a relação processual na qual serão veiculados os dois pedidos, de tutela provisória e de tutela definitiva. Já na tutela provisória de caráter incidente o pedido para concessão da decisão provisória é requerido depois ou na mesma petição do pedido de tutela definitiva, de modo que o autor inicia a relação processual com o pedido de tutela definitiva. Aliás, desde o início do processo ele já estruturou a petição inicial com todos os fatos e fundamentos necessários para a propositura da ação principal. O pedido de tutela provisória pode compor a petição inicial ou ser requerido durante o andamento do processo.
Atenção para não confundir os termos “antecedente,” que se refere a classificação de acordo com o momento processual de requerimento da medida, com “antecipada” ou “antecipatória,” cujos termos se referem à espécie de tutela de urgência que será estudada mais adiante.
Ainda no que se refere à primeira classificação, existe uma subdivisão das tutelas provisórias de urgência em tutelas cautelares e antecipadas. Essa distinção é muito importante porque cada uma delas protege diretamente um bem jurídico diferente e também porque o código regulamenta essas espécies de forma diferente. As tutelas provisórias de urgência cautelares obedecem às disposições específicas dos artigos 305/310. Já as tutelas de urgência antecipadas têm seu regramento específico dispostos nos artigos 303/304.
Não obstante a importância da diferenciação entre cautelares e antecipadas, o código não traz seus conceitos, de modo que cabe a doutrina definir e diferenciar essas tutelas. Sobre o assunto remetemos o leitor aos comentários do art. 300, a seguir.
Por último, é importante ressaltar que, pela própria redação do parágrafo único do art. 294, não é possível requerer a tutela provisória de evidência de forma antecedente. A razão dessa afirmação está no próprio conceito que o Código empresta à tutela de evidência (ver art. 311).

3. Da eficácia e da mutabilidade das tutelas provisórias

Eficácia é a qualidade de produzir o efeito desejado, significa ter força executiva, haja vista que a “eficácia” das tutelas provisórias decorre de sua aptidão para ser realizada no mundo dos fatos imediatamente.
As tutelas provisórias, uma vez executadas, têm preservados no mundo real os efeitos que produziram até que uma decisão definitiva sobrevenha. Portanto, depois da concessão da tutela provisória, o processo deve continuar em busca da decisão definitiva até ser extinto.
A extinção do processo pode-se dar com ou sem resolução de mérito, conforme os artigos 487 e 485 do Novo CPC, respectivamente. Quando a decisão final resolve o mérito, ela pode confirmar ou revogar a tutela provisória que fora concedida. De qualquer forma, o que prevalecerá são os efeitos do provimento jurisdicional definitivo.
Se a extinção do processo foi sem resolução de mérito, também haverá cessação dos efeitos da tutela provisória. Esse é o comando da primeira parte do caput do artigo comentado. Sendo assim, a tutela provisória conserva sua eficácia enquanto durar o processo no qual foi concedida.
Todavia, o artigo 303 do Novo CPC excepciona essa regra. O dispositivo em referência possibilita a estabilização da tutela provisória antecipada. Neste caso, assim que a medida é efetivada, o processo extingue-se sem que haja a cessação dos efeitos da medida provisória concedida. Além de continuar ativa, a tutela antecipatória estabilizada não pode ser revogada ou modificada no processo em que foi concedida, uma vez ele não estará mais em curso.
Qualquer alteração deverá ser requerida em novo processo que tenha como objetivo a tutela definitiva correspondente (sobre a estabilização da tutela antecipada provisória remetemos o autor à leitura dos comentários relativos aos artigos 303 e 304).
A segunda parte do caput do artigo estudado afirma que a qualquer tempo, na pendência do processo, a medida provisória pode ser revogada ou modificada. Trata-se de disposição harmônica com a natureza das tutelas provisórias, pois todas advêm de cognição não exauriente, insuficiente, portanto, para formar coisa julgada.
Em outras palavras, o que é provisório se baseia em cognição não exauriente, não atende à garantia da segurança jurídica, por isso deve durar apenas o tempo necessário e indispensável à obtenção da certeza jurídica exarada pela decisão definitiva final (aquela da qual não cabe mais recurso e pode ser definitivamente executada). Portanto, pelo menos em princípio, após a concessão da tutela provisória o processo deve continuar até chegar a um juízo de certeza. Quanto mais o processo avança o conhecimento a respeito do litígio, vai se ampliando e se aprofundando, de forma que o juízo vai adquirindo mais conhecimento sobre o litígio. Fatos supervenientes podem também acontecer e influenciar o processo. Durante esse caminho a medida provisória concedida vai aos poucos sendo corroborada ou confrontada, sendo adequado que o magistrado possa revogar ou modificar a tutela provisória requerida em conformidade com o andamento do processo, em nome da boa prestação jurisdicional.
São muitas as situações processuais que justificam a revogação ou modificação da tutela provisória. Caso a tutela provisória tenha sido concedida liminarmente, inaudita altera parte, a contestação do réu pode ser motivo suficiente para a cassação da medida.
Haveria limites para o poder do juiz de revogar ou modificar a medida provisória anteriormente concedida, sem que houvesse ao menos requerimento da parte prejudicada?
Existem posições doutrinárias que defendem a necessidade de requerimento da parte prejudicada, mas a posição majoritária defende a revogabilidade e modificabilidade de ofício. Acreditamos que o limite a esse poder do juízo está na fundamentação da decisão. Não seria, por acaso, que logo a seguir, no artigo. 298, o legislador enfatiza o princípio da motivação das decisões judiciais dispondo: “na decisão que conceder, negar, modificar ou revogar a tutela provisória, o juiz motivará seu convencimento de modo claro e preciso”. Na motivação da decisão o Juízo deve indicar quais acontecimentos processuais fundamentam a revogação ou modificação da medida provisória.
Ressaltamos que o dispositivo em comento tem aplicação para as tutelas cautelares, as tutelas antecipadas incidentais sem requerimento de estabilização e também, as tutelas de evidência (aquelas não fundamentadas na urgência).
Quanto às tutelas antecipadas que visam a estabilização, entendemos que extinto o processo no qual a medida foi concedida e alcançada a estabilização, a tutela somente poderá ser revogada ou modificada no bojo do processo posterior que busca a tutela definitiva, a ser eventualmente instaurado antes do prazo de dois anos, regulado pelo parágrafo 5º do artigo 304 do Novo CPC.
Ainda não se pode esquecer de comentar a hipótese na qual tenha havido recurso contra a medida provisória e ela tenha sido mantida pelo Tribunal. Neste caso, como ao juiz de primeiro grau é vedado revogar acórdão, a revogação ou modificação da medida estaria vedada ao juízo por decisão interlocutória. Apenas por ocasião da sentença estaria o magistrado autorizado a revogar ou confirmar a medida provisória.

4. Dos poderes do juiz na efetivação das medidas

O Código de Processo Civil é peremptório ao afirmar que o juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para efetivação da tutela provisória (CPC, art. 297).
Cumpre esclarecer que efetivar a tutela provisória significa executá-la. Nesse sentido, o parágrafo único do citado art. 297 determina que sejam seguidas na execução as normas referentes ao cumprimento provisório de sentença, de maneira que somos remetidos às disposições constantes nos artigos 513 e seguintes do Novo CPC. Ainda segundo o artigo 519 do novel codex, as técnicas de liquidação também se aplicam às tutelas provisórias.
Podemos concluir da leitura do presente dispositivo que a execução das tutelas antecipadas se faz, em regra, na mesma forma do cumprimento de sentença ainda não transitada em julgado, visto que o parágrafo único manda observar as regras da execução provisória e não definitiva. Sobre a distinção entre essas espécies de execução remetemos o leitor à leitura dos comentários referentes aos artigos 513 e seguintes do CPC, especialmente do artigo 520, que regulamenta o cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo.
Ressaltamos que as tutelas provisórias podem determinar execuções por quantia certa, para entrega de coisa certa, de obrigações de fazer ou não fazer, ou seja, “todas as medidas adequadas para a efetivação da tutela provisória”.
Em harmonia com o dispositivo ora estudado está o artigo 301 do Novo CPC que confirma serem as tutelas provisórias cautelares efetiváveis por quaisquer medidas idôneas que assegurem o direito. O artigo, inclusive, traz os seguintes exemplos de medidas cautelares: arresto, sequestro, arrolamento de bens e registro de protesto contra alienação de bem.
Nos casos de estabilização da tutela antecipada encampamos o entendimento de Heitor Vitor Mendonça Sica, para quem a tutela estabilizada enseja execução definitiva, assim que seja extinto o processo nos termos do § 1º do artigo 304 do presente Código. Afinal, não faria sentido criar a estabilização e impor-lhe as restrições do provimento provisório de sentença como a exigência de caução para levantar quantia depositada em dinheiro, ou para alienação de propriedade e transferência de posse. Não podemos esquecer que, nesses casos, quando o executado deixou de recorrer tinha ciência da consequente estabilização de tutela, o que equivale a uma concordância tácita, não com o mérito da tutela, mas com todos os seus efeitos.

5. Da motivação da decisão

Determina o nosso Código de Processo Civil que o juiz deverá motivar seu convencimento de modo claro e preciso toda vez que conceder, negar, modificar ou revogar a tutela provisória (art. 298).
Tal dispositivo corrobora o princípio processual constitucional da motivação das decisões jurisdicionais, expresso no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, que dispõe: “Todos os julgamento dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, (…)”.
O princípio da motivação das decisões judiciais é tradição em nosso ordenamento jurídico e também é reafirmado pelo art. 489 no estatuto processual vigente, tendo em vista que não basta o juiz dizer o direito, sendo de fundamental importância que ele diga quais os fundamentos fáticos e jurídicos que motivaram seu convencimento..
O princípio da motivação das decisões judiciais está intimamente relacionado ao nosso sistema de valoração das provas produzidas no processo e à liberdade de julgar dos magistrados. Sabemos que impera o princípio do livre convencimento motivado do juiz, segundo o qual o juiz tem liberdade de avaliar e valorar as provas produzidas durante o processo, além de poder formar uma convicção “pessoal” sobre a resolução da lide.
Trata-se de uma convicção pessoal, mas submetida aos ditames de nosso ordenamento jurídico. Tudo deve se passar como se o magistrado tivesse alcançado conhecer a vontade da lei para o caso concreto. Ao elaborar sua fundamentação ele deve demonstrar que chegou à solução de maneira imparcial, com o raciocínio submetido à lógica, aos princípios e ao conhecimento jurídico-científico.
A motivação expressa das decisões jurisdicionais é instrumento imprescindível para saber se houve imparcialidade, se o julgador realmente conheceu a lide, se ele apreciou e considerou os argumentos das partes, enfim se as garantias constitucionais foram respeitadas.
Entendemos que ao corroborar o princípio da motivação das decisões judiciais neste ponto do código, o legislador quis senão limitar pelo menos alertar para a adstrição o poder do juiz de conceder revogar, modificar, ou conceder as tutelas provisórias aos princípios constitucionais, cujo cumprimento pode ser controlado mediante a análise da motivação das decisões a respeito das tutelas provisórias.
Mais especificamente em relação à modificação ou revogação de decisão já proferida o Juízo deve indicar com elementos que constam dos autos que os motivos da mudança de seu entendimento.

6. Da competência

Segundo dispõe o art. 299 do Novo CPC, as tutelas provisórias de caráter antecedente devem ser requeridas ao Juízo competente para apreciar o pedido principal. Coerentemente, as tutelas provisórias incidentais também devem ser julgadas pelo juiz natural do pedido principal. As normas relativas à competência estão dispostas nos artigos 44 a 53 do Novo CPC, aos quais remetemos o leitor.
O parágrafo único do art. 299 diz respeito à competência para julgar o pedido de tutela provisória em nível de tribunal. Isso pode acontecer quando a causa é de competência originária do tribunal, de forma que o juiz de primeiro grau não participa do julgamento da lide ou quando, estando a causa em nível recursal, surge a necessidade ou a conveniência de uma das partes requerer o pedido de tutela provisória. Neste caso, o presente dispositivo determina que a parte faça o pedido diretamente ao órgão do tribunal competente para julgar o mérito do recurso.
É importante distinguir duas situações: a primeira refere-se à situação interposição de recurso contra a decisão que julgou o pedido de tutela provisória. Concedida ou denegada a medida pelo juiz de primeiro grau, cabe agravo de instrumento que devolve o mérito da tutela provisória ao órgão recursal competente para manter, cassar ou modificar a medida. Nessa hipótese o pedido de tutela provisória foi feito em primeiro grau e a decisão do juiz está sendo combatida pelo recurso.
Mas é perfeitamente possível que a parte não tenha feito ainda qualquer pedido de tutela provisória ao juízo de primeiro grau. É possível que apenas quando a causa estiver em nível recursal surja a necessidade de uma tutela provisória. Neste caso o pedido de tutela provisória deve ser requerido diretamente ao órgão de segundo grau. Isso independe da espécie de tutela provisória requerida, seja de urgência (cautelares e antecipatórias), seja de evidência, o pedido deve ser feito diretamente no órgão ad quem.
A concessão de tutelas provisórias em nível recursal é feita principalmente pelo manejo do efeito suspensivo dos recursos. O efeito suspensivo é aquele que retira da decisão recorrida a aptidão para ser executada. Quando um recurso contra qualquer decisão é recebido com efeito suspensivo, significa que a decisão que está sendo combatida pelo recurso não terá eficácia enquanto o recurso não for julgado. O inciso II do artigo 932 do presente Código concede ao relator do recurso poderes para “apreciar o pedido de tutela provisória nos recursos e nos processos de competência originária do tribunal”. De forma que o relator está autorizado a atribuir efeito suspensivo a recurso que por regra não o tenha (efeito suspensivo ope judicis) e também a cassar o efeito suspensivo dos recursos que como regra o tenham. São exemplos de dispositivos legais que concedem esse poder ao relator: § 3º do art. 1.012; § 1º do art. 1.026; § 5º do art. 1.029, aos quais remetemos o leitor.

7. Conclusão

As tutelas provisórias nunca fazem coisa julgada, ou seja, são inaptas para se tornar imutáveis e indiscutíveis. Já as tutelas definitivas, diferentemente, ao transitar em julgado, adquirem imunidade contra decisões posteriores.
A coisa julgada é imutável porque não pode ser modificada por decisão posterior. Consequentemente, a propositura de mesma lide em outro processo fica vedada. Além de imutável, ela é indiscutível porque impede que se aprecie a mesma questão em outro processo futuro entre as mesmas partes.
Já a tutela provisória não transita em julgado, de modo que pode ser modificada ou revogada por decisão posterior (ver Novo CPC, art. 296), além de também ser rediscutida no mesmo processo ou em outro processo futuro entre as mesmas partes. Uma vez extinto o processo na qual ela foi concedida, a tutela provisória não impede a reapreciação da mesma lide em outro processo entre as mesmas partes.
Como já dissemos, o objetivo maior das tutelas provisórias consiste em atender à efetividade e à celeridade processuais, de forma que se abre mão de um juízo de certeza em prol da efetividade e celeridade. Um juízo de certeza jurídica somente pode ser obtido após a produção integral de provas, obedecido o contraditório, a ampla defesa, efetivado todo o procedimento legal, enfim, respeitadas todas as garantias do devido processo legal.
Uma decisão definitiva está fundamentada em uma cognição plena e exauriente. Plena porque significa que o juiz examinou toda a extensão do debate das partes, e exauriente porque foi observado o maior grau de profundidade possível. A decisão proferida com base em cognição plena e exauriente propicia um juízo com o mais elevado índice de segurança em relação à certeza do direito controvertido. Por isso, o Estado confere a essa decisão a autoridade da coisa julgada.
Diferentemente acontece com as decisões provisórias que estão fundamentadas em cognição sumária, não exauriente. Elas advêm de um juízo superficial e não aprofundado que se baseia na probabilidade do direito alegado pelo requerente. Para o autor, “entre a perfeição e a celeridade, o legislador procurou privilegiar este último, mas em contrapartida deixou de conferir a autoridade de coisa julgada material ao conteúdo declaratório assentado em cognição sumária”.

8. Bibliografia

ALVIM, Arruda Manual de Direito Processual Civil, 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
ALVIM, Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda; ASSIS, Araken. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ editora, 2012.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela – exposição didática. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2010.
MELO, Nehemias Domingos de. Novo CPC Anotado, Comentado e Comparado, 2ª. ed. São Paulo: Rumo Legal, 2016.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
SICA, Heitor Vitor Mendonça. Primeiras impressões sobre a “estabilização da tutela antecipada” IN: Revista do Advogado, n.126, maio 2015.
WATANABE, Kazuo. Da cognição do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

  • Autor: NEHEMIAS DOMINGOS DE MELO

    Sumário: I – Conceito do dano moral individual. II – Da caracterização do dano moral. III – Da prova do dano. IV – Dos fundamentos da reparação. V – Por uma teoria renovada para quantificação da indenização por dano moral (teoria da exemplaridade). VI – Bibliografia.

    I – Conceito do dano moral individual

    No conceito de dano moral encontramos definições para todos os gostos. Neste particular aspecto a doutrina é pródiga, porém, em que pesem pequenas nuances, há uma concordância quanto a classificar a lesão que possa autorizar a indenização por danos morais, como aquela que atinge o âmago do indivíduo, causando-lhe dor (incluindo-se aí a incolumidade física), sofrimento, angústia, vexame ou humilhação e, por se passar no íntimo das pessoas, torna-se insusceptível de valoração pecuniária adequada, razão porque o caráter da indenização é o de compensar a vítima pelas aflições sofridas e, de lhe subtrair o desejo de vingança pessoal.
    Nos ensinamentos do laureado mestre Wilson Melo da Silva os danos morais são definidos como sendo as “lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico”. Para melhor explicitar o seu pensar o insigne mestre complementa: “Danos morais, pois, seriam exemplificadamente, os decorrentes das ofensas à honra, ao decoro, à paz interior de cada qual, às crenças intimas, à liberdade, à vida, à integridade corporal”.
    O magistrado Arnaldo Marmitt conceitua o dano moral como sendo “o efeito da ofensa a um bem jurídico imaterial, integrante da personalidade ou do patrimônio moral de alguém”. Daí porque se pode afirmar que resulta em lesão que tanto pode ser do patrimônio moral ou à honra da pessoa natural quanto a reputação e a fama quando se tratar de pessoa jurídica.
    Por seu turno, a renomada professora Maria Helena Diniz, escudando-se também em Wilson Melo da Silva, preleciona: “O dano moral vem a ser a lesão de interesses não patrimoniais de pessoa física ou jurídica, provocada pelo fato lesivo”. Para ao depois arrematar que o dano moral pode consistir na lesão a um interesse jurídico extrapatrimonial relacionado aos “direitos da personalidade (como a vida, a integridade corporal, a liberdade, a honra, o decoro, a intimidade, os sentimentos afetivos, a própria imagem) ou aos atributos da pessoa (como o nome, a capacidade, o estado de família)”, além daqueles que decorrem do valor afetivo atribuído a qualquer bem material, caso em que a sua perda pode vir a representar um menoscabo.
    Dano moral, à luz da Constituição Federal vigente, nada mais é do que a violação do direito à dignidade, é o que afirma de forma peremptória o magistrado e professor Sérgio Cavalieri Filho. Ao depois, definindo melhor o alcance do preceituado esclarece que “hoje o dano moral não mais se restringe à dor, tristeza e sofrimento, estendendo a sua tutela a todos os bens personalíssimos – os complexos de ordem ética -razão pela qual revela-se mais apropriado chamá-lo de dano imaterial ou não patrimonial, como ocorre no direito português”. Para ao depois concluir que “em razão dessa natureza imaterial, o dano moral é insusceptível de avaliação pecuniária, podendo apenas ser compensado com a obrigação pecuniária imposta ao causador do dano, sendo esta mais uma satisfação do que uma indenização”.
    Com o advento do novo Código Civil e, cotejando os avanços doutrinários e jurisprudenciais, ousamos afirmar que o dano moral é toda agressão injusta àqueles bens imateriais, tanto de pessoa física quanto de pessoa jurídica ou mesmo da coletividade, insusceptível de quantificação pecuniária, porém indenizável com tríplice finalidade: satisfativo para a vítima, dissuasório para o ofensor e de exemplaridade para a sociedade.

    II – Da caracterização do dano moral

    É preciso destacar que não é qualquer dissabor ou qualquer contrariedade que caracterizará o dano moral. Na vida moderna há o pressuposto da necessidade de coexistência do ser humano com os dissabores que fazem parte do dia-a-dia. Desta forma, alguns contratempos e transtornos são inerentes ao atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade.
    Neste sentido, como alerta o mestre Antônio Chaves, há que se ter prudência de tal sorte que não se venha reconhecer a existência de dano moral em “todo e qualquer melindre, toda suscetibilidade exacerbada, toda exaltação do amor-próprio pretensamente ferido, a mais suave sombra, o mais ligeiro roçar das asas de uma borboleta, mimos, escrúpulos, delicadezas excessivas, ilusões insignificantes desfeitas, possibilitando sejam extraídas da caixa de Pandora do direito centenas de milhares de cruzeiros”.
    O memorável Aguiar Dias, em sua obra de antes da metade do século passado, com lastros da doutrina dos irmãos Henri e Leon Mazeaud, já advertia que “à medida que a civilização se desenvolve, tornam-se mais e mais complexas as relações sociais, com interpenetração cada vez mais profunda dos círculos de atividade jurídica de cada um. É inevitável, em tais condições, o atrito de interesses, cada vez mais intenso, desdobrando-se em problemas de responsabilidade civil”.
    Muitos doutrinadores consideram árdua a tarefa de separar o joio do trigo, isto é, delimitar frente ao caso concreto, o que vem a ser dissabores normais da vida em sociedade ou danos morais. Esta questão é das mais tormentosas, exatamente por não existirem critérios objetivos definidos em lei, de tal sorte que o julgador acaba por buscar supedâneo na doutrina e na jurisprudência para aferir a configuração ou não do dano moral. De toda sorte, o que precisa haver na avaliação do dano moral é prudência e bom senso de tal sorte que se possa, considerando o homem médio da sociedade, ver configurado ou não a lesão a um daqueles bens inerentes à dignidade humana de que a Constituição nos fala.
    Neste aspecto, cumpre ao juiz um papel de relevo, seja porque é ele que, a partir das chamadas máximas de experiências, irá analisar o caso concreto e adequá-lo à proteção legal, seja porque dependerá de seu livre arbítrio, segundo a melhor doutrina, a fixação do quantum indenizatório. Contudo, esta discricionariedade do juiz, deverá ser pautada pelo bom senso, seguido de alguns critérios, porquanto haverá de, frente ao ilícito perpetrado, sopesar o grau de culpa do ofensor, as condições sociais e econômicas das partes envolvidas, a repercussão do fato lesivo no seio social, de tal sorte que a indenização não seja tão grande que leve o ofensor à ruína, nem seja tão pequena que avilte a vítima.

    III – Da prova do dano

    Outra questão tormentosa refere-se a necessidade ou não de prova do dano moral. Autores renomados têm afirmado que o dano moral, por tratar-se de lesão ao íntimo das pessoas, dispensa a necessidade de prova, conformando-se a ordem jurídica com a demonstração do ilícito porquanto o dano moral estaria configurando desde que demonstrado o fato ofensivo, existindo in re ipsa.
    Nesse mesmo sentido tem se orientado a jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça, conforme se pode notar no voto do saudoso Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, de cujo trecho se transcreve: “Já assentou a Corte que não há falar em prova do dano moral, mas, sim, na prova do fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam. Provado assim o fato, impõe-se a condenação, sob pena de violação ao art. 334 do Código de Processo Civil”. Ou como vaticinou o então Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, em julgamento do qual foi relator, cujo trecho da emenda assim se redigiu: “A prova do dano moral se satisfaz, na espécie, com a demonstração do fato que o ensejou e pela experiência comum”. Mesmo entendimento manifesta o Ministro Cesar Asfor Rocha que, em termos da questão em análise, já teve oportunidade de se manifestar e, assim o fez: “Na concepção moderna da reparação do dano moral prevalece a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do prejuízo em concreto”.
    E existe uma natural lógica para assim proceder, porquanto, se o dano moral existe a partir da lesão a um daqueles direitos íntimos da pessoa humana, tal qual a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem, somente para citar alguns, não há nenhuma lógica exigir-se a prova da repercussão no íntimo do ofendido dos efeitos de tais violações. O ordenamento jurídico há que se conformar com a presunção de que, em razão de máximas de experiências, qualquer indivíduo de mediana sensibilidade, se sentiria ofendido e agredido em seus valores anímicos, diante de determinados procedimentos ilícitos.
    De outro lado, dentre os vários elementos que norteiam a caracterização do dano moral, há que se destacar a dor (tanto física quanto moral), como um dos elementos essenciais para a determinação da existência do dano moral, que também se pode presumir. Sabemos que não se pode medir a extensão da dor de quem tenha sido lesionado, porém, é evidente a dor dos pais pela morte violenta do filho; assim como se pode presumir o sofrimento ou complexo de quem sofreu um dano estético; ou ainda, daquele que foi humilhado por publicação injuriosa, dentre tantos outros exemplos que se poderia ofertar. Em casos, não há dúvidas, os atingidos sentirão grande aflição, ainda que se possa considerar as variáveis de pessoa para pessoa.
    Contudo, é importante salientar que não é somente a dor o elemento que caracteriza o dano moral e o correspondente dever de indenizar. Situações há que a caracterização independe da existência ou não da dor, tais como nos casos que envolvem exposição indevida na mídia, agressão à honra, violação da intimidade e da privacidade, dentre outras.
    Ocorrendo agressões a esses bens personalíssimos do indivíduo, nascerá para o ofensor a obrigação de indenizar por dano moral, porquanto tais atos não podem ficar impunes.

    IV – Dos fundamentos da reparação

    Como ensina o mestre Caio Mário da Silva Pereira, “o fundamento da reparabilidade pelo dano moral está em que, a par do patrimônio em sentido técnico, o indivíduo é titular de direitos integrantes de sua personalidade, não podendo conformar-se a ordem jurídica em que sejam impunemente atingidos”.
    Ademais, não se pode descurar do caráter penal que a condenação por dano moral deve conter. Além do caráter compensatório é certo que “quem exige uma reparação do dano moral sofrido não visa tanto a recomposição do seu equilíbrio de afeição ou sentimento, impossível de conseguir, como infligir, por um sentimento de represália inato, ao seu ofensor, uma punição, por precária que seja, que, na maior das vezes não encontra outro parâmetro senão em termos pecuniários”.
    Nesta linha de raciocínio, o professor e magistrado José Luiz Gavião de Almeida afirma de maneira categórica que “a reparação dos danos morais não busca reconduzir as partes à situação anterior ao dano, meta impossível. A sentença visa a deixar claro que a honra, o bom nome e a reputação da vítima restaram lesionados pela atitude inconseqüente do causador do dano. Busca resgatar o bom conceito de que se valia o ofendido no seio da sociedade. O que interessa, de fato, é que a sentença venha declarar a idoneidade do lesado; proporcionar um reconforto à vítima, e, ainda, punir aquele que agiu, negligentemente, expondo o lesado a toda sorte de dissabores”.
    Ainda nesse sentido defende Martinho Garcez Neto que a função penal, da condenação por dano moral, pode e deve ser encarada como algo altamente moralizador, na medida em que, atingindo o patrimônio do agressor com a sua consequente diminuição, estaria, frente à luz moral e da equidade, cumprindo a mais elementar noção de justiça: estar-se-ia punindo o ofensor para que o bem moral seja respeitado e, mais importante, fazendo calar o sentimento de vingança do ofendido, sentimento este inato em qualquer pessoa, por mais moderno e civilizado que possa ser.
    Ademais, é preciso recordar que a dignidade da pessoa humana foi elevada a um dos fundamentos básicos do Estado brasileiro. Veja-se que na Constituição Federal de 1988 o legislador constituinte fez insculpir, já no artigo primeiro, dentre os fundamentos sobre os quais se assenta o Estado Democrático de Direito, a dignidade humana (art. 1°, III).
    Desta forma, conforme preleciona Sérgio Cavalieri Filho “temos hoje o que pode ser chamado de direito subjetivo constitucional à dignidade”, com reflexos inevitáveis na conceituação de dano moral, na exata medida em que, os valores que compõem à dignidade humana são exatamente aqueles que dizem respeito aos valores íntimos da pessoa, tais como o direito à intimidade, à privacidade, à honra, ao bom nome e outros inerentes à dignidade humana que, em sendo violados, hão de ser reparados pela via da indenização por danos morais (CF, art. 5°, V e X).
    De nossa parte, temos certeza em afirmar que se fosse dada oportunidade de escolha aos lesados, seguramente eles desejariam que não tivesse ocorrido a lesão. Contudo, como independentemente da vontade das pessoas agressões ocorrem, temos que o sentimento de justiça presente em cada cidadão faz surgir a necessidade de “uma vez verificada a existência do dano, e sendo alguém responsável pela lesão de direito ocorrida, há que se buscar uma solução para o evento danoso” de tal forma a que se procure “compor a ordem que foi quebrada, o direito que foi ofendido”.
    De maneira objetiva e com a clareza que lhe é peculiar, Antonio Jeová Santos preleciona que “seria escandaloso que alguém causasse mal a outrem e não sofresse nenhum tipo de sanção; não pagasse pelo dano inferido”. Em outras palavras, o princípio que fundamenta o dever de indenizar se encontra centrado no fato de que a todo o dano injusto deve corresponder um dever de reparação.
    De tal sorte que se pode concluir, utilizando as sábias palavras de Artur Oscar de Oliveira Deda: “Quando a vítima reclama a reparação pecuniária de dano moral, não pede um preço para sua dor, mas, apenas, que se lhe outorgue um meio de atenuar, em parte, as consequências da lesão jurídica. Na reparação dos danos morais, o dinheiro não desempenha a função de equivalência, como, em regra, nos danos materiais, porém, concomitantemente, a função satisfatória e a de pena”.
    Por fim, trazemos à colação os ensinamentos contemporâneos do professor e brilhante magistrado paulista Ênio Santarelli Zuliani, que com maestria, nos brinda com uma pérola que deveria, tal qual um farol, iluminar e indicar a direção a toda a magistratura, no que diz respeito à reparação por dano moral. Veja-se: “A honra, embora conceito abstrato, incorporou-se na anatomia do ser que é sujeito de direito de personalidade e ganhou função orgânica por constituir o fluído da felicidade ou alimento da dignidade humana (art. 1º, III, da CF) e os Magistrados devem reparar uma ofensa à honra com a mesma eficiência e rapidez com que os médicos estancam uma hemorragia sanguínea. A alma perece com a honra afrontada e sepulta o encanto da vida. Sociedade povoada com homens infelizes, doentes de espírito, não evolui; retroage à barbárie”.

    V – Por uma teoria renovada para quantificação da indenização por dano moral (teoria da exemplaridade).

    Em face de tudo quanto argumentado é que defendemos uma nova teoria para a apuração do quantum indenizatório nas ações de reparação por danos morais, com caráter predominantemente punitivo.
    Por essa nova teoria, a definição da verba indenizatória, a título de danos morais, deveria ser fixada tendo em vista três parâmetros: o caráter compensatório para a vítima; o caráter punitivo e dissuasório para o causador do dano e, o caráter exemplar e pedagógico para a sociedade.
    Para a vítima, este caráter compensatório nada mais seria do que lhe ofertar uma quantia capaz de lhe proporcionar alegrias que, trazendo satisfações pudesse compensar a injusta agressão sofrida, além do sentimento de que a justiça foi realizada.
    No tocante ao agressor, o caráter punitivo teria uma função de desestímulo que agisse no sentido de demonstrar ao ofensor que aquela conduta é reprovada pelo ordenamento jurídico, de tal sorte a que não voltasse a reincidir no ilícito.
    Quanto ao caráter exemplar, a condenação deveria servir como medida educativa para o conjunto da sociedade que, cientificada de que determinados comportamentos são eficazmente reprimidos pelo Judiciário, tenderia a ter maior respeito aos direitos personalíssimo do individuo.
    Em face deste trinômio e tendo em vista o caráter da efetividade da condenação por danos morais, defendemos que, na fixação do quantum, o juiz além de ponderar os aspectos contidos no binômio punitivo-compensatório, poderia adicionar outro componente, qual seja, um plus que servisse como advertência de que a sociedade não aceita aquele comportamento lesivo e o reprime, de tal sorte a melhor mensurar os valores a serem impostos como condenação aos infratores por danos morais.
    Neste particular aspecto, para evitar-se o chamado enriquecimento sem causa, esse plus advindo da condenação não seria destinado à vítima, mas sim, para entidades que defendam o interesse público ou coletivo gratuitamente (entidades de benemerência, assistenciais, filantrópicas ou de pesquisas) tais como as Santas Casas e outros hospitais congêneres; lares e casas de apoio às crianças ou aos idosos; entidades religiosas com trabalho social relevante; entidades de pesquisa ou investigação científica, preferencialmente localizada na comarca onde o dano foi perpetrado.
    Na hipótese de inexistência de entidades que se qualifiquem e preencham os requisitos para o recebimento acima preconizado, o juiz destinará esses valores para o fundo estadual de interesses difusos.
    O aspecto inovador na propositura acima esposada, é que, partindo da premissa de que quanto maior for a pena, menor será o índice de reincidência, associado ao fato de que se a sociedade tomar ciência de que determinadas condutas são reprimidas com vigor pelo Poder Judiciário, acredita-se que os direitos humanos e a dignidade das pessoas sofreriam menos agressões, na exata medida em que o peso da condenação seria sentida no bolso do infrator como fator de desestímulo.
    De outro lado, ao adotar-se que a destinação desse plus condenatório deve ser destinado à entidades de benemerência ou ao fundo estadual de interesses difusos, estar-se-ia atingido dois objetivos relevantes: recompensando-se o corpo social, já que último destinatário dos comandos jurisdicionais e, de outro lado, evitando o chamado “enriquecimento sem causa” da vítima, argumento atualmente muito utilizado como fator limitativo do montante indenizatório.
    Dessa forma, o juiz ao fixar o quantum indenizatório, deveria levar em consideração, frente ao caso concreto, os seguintes aspectos:
    A angústia e o sofrimento da vítima: de tal sorte a lhe propiciar uma indenização possível de lhe compensar os sofrimentos advindos da injusta agressão.
    A potencialidade do ofensor: para que não lhe impinja uma condenação tão elevada que signifique sua ruína, gerando por via de conseqüência a impossibilidade de cumprimento da medida, e nem tão pequena que avilte a dor da vítima.
    E, finalmente, a necessidade de demonstrar à sociedade que aquele comportamento lesivo é condenável e que o Estado juiz não admite e nem permite que sejam reiterados tais ilícitos sem que o ofensor sofra a devida reprimenda.
    Diferentemente do direito americano, onde vige o exemplary damages, pelo qual a vítima é quem se beneficia do plus condenatório outorgado a título de condenação penal, propomos que esses valores sejam destinados a entidades de benemerência, voltadas para obras de assistência social ou de pesquisa científica, de sorte que esses valores, retornem para sociedade, ainda que de forma indireta.
    Assim, podemos concluir: o mundo moderno, onde a desmedida corrida em busca do lucro, sem que se respeitem a ética e a moral nas relações negociais, transformou os seres humanos em frios e abstratos números. O melhor método de garantir o respeito à dignidade e aos direitos fundamentais da pessoa humana, somente atingirá seus desígnios, se for adotada uma postura sólida de reprimenda aos abusos amiúde cometidos.
    O peso da indenização no “bolso” do infrator é, a nosso sentir, a resposta mais adequada que o ordenamento jurídico pátrio pode oferecer para garantir não sejam ofendidos diuturnamente os bens atinentes aos direitos da personalidade.
    Em resumo:
    A condenação por danos morais deve ter o caráter de atender aos reclamos e anseios de justiça, não só do cidadão, mas da sociedade como um todo.
    Na questão de danos morais, a sentença deve atender ao binômio efetividade e segurança, de tal sorte que as decisões do Judiciário possam proporcionar o maior grau possível de reparação do dano sofrido pela parte, independentemente do ramo jurídico em que se enquadre o direito postulado.
    Conquanto o brio, o amor próprio, a honradez e a dignidade não tenham preço para o homem de bem, a condenação do ofensor em valores significativos, poderá representar para o ofendido o sentimento de justiça realizada.
    Ademais, a indenização por dano moral deverá ter como objetivo, além do caráter pedagógico, a finalidade de combater a impunidade, já que servirá para demonstrar ao infrator e a sociedade que aquele que desrespeitou às regras básicas da convivência humana, poderá sofrer uma punição exemplar.
    Desta forma, a teoria que melhor se coaduna com os anseios da sociedade moderna, no tocante à reparação por danos morais, é aquela que tem um caráter tríplice, qual seja: punitivo, compensatório e exemplar.
    A aceitação da tese de criação de uma pena pecuniária adicional, que pode ser chamada de multa civil, com o fito de servir como desestímulo à prática de novos ilícitos, cuja verba deva ser revertida para entidades de benemerência ou ao fundo estadual de interesses difusos, é a melhor solução para evitar que a vítima venha a ser beneficiária do chamado “enriquecimento sem causa”.
    Aos grandes conglomerados econômicos cabe exigir atitudes de vigilância quanto à qualidade dos serviços prestados ou de produtos ofertados, especialmente no tocante à prevenção dos chamados erros operacionais, cometidos amiúde por seus funcionários e prepostos, de tal sorte a reduzir a incidência de afrontas aos direitos e a dignidade dos usuários de tais produtos e serviços.
    A utilização desmedida do instituto do dano moral poderá criar o descrédito e vir a banalizar tão importante instrumento, por isso que se recomenda ao Judiciário a adoção de critérios sólidos na aferição e na quantificação da indenização por ilícitos desta ordem e, aos operadores do direito, que utilizem de cautela e prudência na propositura de demandas a esse título.
    O fato de existirem desvios, não pode ter o condão de invalidar tão importante preceito legal. É preciso que se aperfeiçoem os instrumentos postos à disposição daqueles que manejam o direito, de tal sorte que os excessos possam ser coibidos.

    Desta forma, sugere-se ao Congresso Nacional, a alteração do art. 944 do Código Civil, para contemplar a possibilidade de uma indenização adicional nas ações decorrentes de dano moral, além da justa indenização à vítima, cuja redação, em que pese a eventual imperfeição legislativa da propositura, poderia ter o seguinte teor:

    Proposta de alteração do Código Civil – Lei n° 10.406/02:
    Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
    § 1° – (o atual parágrafo único, renumerado).
    § 2° – Nas ações de reparação por dano moral, poderá o juiz de ofício, sopesando o grau de culpa ou dolo do infrator e seu potencial econômico, fixar, além da justa indenização para a vítima, uma multa civil cujo valor será destinado à entidades de benemerência ou ao Fundo Estadual de Interesses Difusos.

    Quer dizer, a função pedagógica da indenização por dano moral deve ser preponderante sobre a reparadora, razão pela qual o valor da indenização deverá ser arbitrado com rigor, de modo a que o ofensor, e todos que tomarem conhecimento da condenação, se abstenham de praticar conduta semelhante no futuro.
    Assim, o caráter punitivo da indenização por dano moral deve prevalecer em relação ao caráter compensatório. Se dúvida restar, tomemos como exemplo dois acidentes de trânsito com vítima: um causado por simples imprudência, no qual o agente socorre a vítima; outro causado dolosamente ou de maneira gravemente reprovável e na qual o agente nada faz em favor da vítima. Condenar os dois motoristas a pagar indenização em valores iguais atentaria contra o princípio constitucional da igualdade e o senso comum de justiça. Quer dizer, não se pode defender indenizações idênticas para danos iguais, porque eles podem ter sido causados por condutas completamente distintas em termos de reprovação.
    Sob pena de redundância, vejamos outro exemplo. Duas pessoas têm seus nomes incluídos indevidamente no Serasa. Ambas reclamam extrajudicialmente com as empresas que apontaram seus nomes: uma das empresas atende prontamente e corrige a falha operacional, excluindo o nome de seu cliente daquele banco de dados; a outra, queda-se silente e nada faz, de sorte que o consumidor só consegue a retirada de seu nome daquele cadastro negativo de crédito através de decisão judicial. Em situação como esta, não se pode condenar ambas as empresas em valores iguais, sob pena de premiar a incúria daquela que, mesmo instada, nada fez.
    Por isso entendemos que as condenações, em face de determinadas condutas, devem ser exemplares, quer dizer, em valores significativos, de sorte a fazer com que os grandes conglomerados econômicos, especialmente as instituições financeiras, os planos de saúde e as empresas de telefonia (fixa ou móvel), apenas para citar alguns exemplos,repensem seus conceitos de atendimento aos clientes.
    Quer dizer, as sentenças poderão ser transformadas em armas de uma política de conscientização dos fornecedores de produtos e serviços. Isto porque, se os profissionais prestadores de serviços e as empresas de um modo geral, tomarem conhecimento de que as condenações não são mais simbólicas, ou seja, que elas estão rompendo os redutos onde antes reinava a impunidade, é de se esperar que eles criem métodos eficazes de eliminação das reclamações, pois saberão de antemão que assim não procedendo, poderão sofrer severas condenações.
    Assim podemos concluir: o instituto do dano moral, expressamente previsto na Constituição Federal (art. 5°, V e X), deve ser visto como instrumento eficaz no sentido de assegurar o direito à dignidade humana (CF, art. 1°, III), e precisa ser aperfeiçoado, de tal sorte que podemos afirmar que a sua efetividade somente ocorrerá, de forma ampla e cabal, quando se puder dotar o juiz da liberdade plena na aplicação “da teoria da exemplaridade”, pela qual se possa apenar o ofensor com a tríplice finalidade: punitivo,compensatório e exemplar.

    VI – Bibliografia
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  • Autor: Nehemias Domingos de Melo

    Sumário: 1. A positivação do princípio da dignidade humana. 2. A interpretação dos direitos humanos. 3. O valor supremo da dignidade humana. 4. Conclusões. 5. Bibliografia.

    1. A positivação do princípio da dignidade humana

    Muito embora expressão “dignidade da pessoa humana”, já tivesse sido utilizada anteriormente no campo da ética, da religião, da filosofia, da ciência e até mesmo do direito, é com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU que essa expressão ingressa, definitivamente, no ordenamento jurídico universal.
    Assim, a dignidade da pessoa humana, como conceito jurídico indeterminado, que além de normativo é axiológico, é proclamada para o mundo pelos povos reunidos em torno da Organização das Nações Unidas.
    Nota-se a importância do enunciado quando ele aparece já no preâmbulo da Declaração, como um farol a iluminar, por assim dizer, todo o texto, sendo reafirmado, logo em seguida, no seu artigo primeiro: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (primeiro considerando); e, “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla” (quinto considerando), a Assembléia Geral das Nações Unidas proclama: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (art. 1°).
    Alias, a Declaração além de afirmar uma ética universal introduz uma nova concepção para a compreensão dos direitos humanos marcados pela universalidade e indivisibilidade. Universal porque basta ser pessoa humana para ser titular desse direito, cujo fundamento principal é a dignidade da pessoa humana; e, indivisível porque agora, além dos direitos civis e políticos, consagram-se também os direitos econômicos, sociais e culturais.
    Após as atrocidades cometidas durante a 2ª. Guerra Mundial e o ato final da tragédia, com o lançamento da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, “as consciências se abriram, enfim, para o fato de que a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana”.
    Contra os céticos, os neutros e os negadores da significação objetiva da ética e da justiça, a Declaração Universal dos Direitos Humanos acabou por fazer uma afirmação solene do valor que é o fundamento da vida social: “a dignidade inerente a todos os membros da família humana”.
    Afirmou-se assim, que as pessoas não são sombras, não são aparências, são realidades concretas e vivas, daí porque a Declaração fez um duplo reconhecimento: Primeiro, que acima das leis emanadas do poder dominante, há uma lei maior de natureza ética e validade universal. Segundo, que o fundamento dessa lei é o respeito à dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a pessoa humana é o valor fundamental da ordem jurídica, sendo, portanto, a fonte das fontes do direito.
    Com pequenas diferenças a expressão “dignidade da pessoa humana” hoje se encontra positivado tendo passado a integrar o texto constitucional dos países democráticos e, por exemplar, cabe destacar que a Constituição brasileira alçou-a a “princípio fundamental da República” (art. 1°, III), ao lado dos princípios da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político.

    2. A interpretação dos direitos humanos

    Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que a mesma se contém.
    Neste diapasão, interpretar direitos humanos significa buscar um equilíbrio entre o direito natural e o direito positivo, tendo como base fundamental a dignidade humana e, daí extrair a norma mais favorável à proteção da dignidade humana ao caso concreto.
    De outro lado, é preciso considerar que os princípios, em qualquer ordenamento jurídico, são “verdades fundantes”, são proposituras fundamentais que estruturam e dão coesão ao sistema jurídico estudado, permitindo a integração das partes ao todo, independentemente de estarem, ou não, positivados. Quer dizer, “são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para elaboração de novas normas”.
    Além disso, conforme deixou assentado a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, “todos os direito humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”, de tal sorte a afirmar que na colidência entre uma norma interna e os postulados internacionais, deve prevalecer este último tendo em vista o princípio de que a essência do ser humano é uma só, não obstante a multiplicidade de diferenças, individuais e sociais, biológicas e culturais, que existem na humanidade e, exatamente por isso, todos os seres humanos merecem igual respeito e proteção, a todo tempo e em todas as partes do mundo em que se encontrem.
    Por isso mesmo, Flávia Piovesan leciona com percuciência que o valor da dignidade da pessoa humana, impõe-se como núcleo básico e informador de todo e qualquer ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão de qualquer sistema normativo, mormente o sistema constitucional interno de cada país.
    Tratando-se, pois, de direitos humanos, o intérprete deve ter em mente que o direito positivo não pode contrariar ou negar vigência aos direitos fundamentais dos seres humanos, assim como o direito interno não pode contrariar direitos humanos consagrados universalmente por serem indisponíveis e insuprimíveis, dado ao seu caráter de norma de valor supra-constitucional ou de natureza supra-estatal.

    3. O valor supremo da dignidade humana

    Nesse cenário e para exata compreensão do princípio da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, é preciso rememorar que os avanços têm sido fruto da dor física e do sofrimento moral como resultado de surtos de violências, mutilações, torturas, massacres coletivos, enfim, situações aviltantes que fizeram nascer consciências e exigências de novas regras de respeito a uma vida digna para todos os seres humanos.
    Ademais, é preciso rememorar que com o fim da Segunda Guerra Mundial e, em face das atrocidades cometidas pelos dirigentes nazistas, houve uma tomada de consciência universal, espelhada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo como base uma razão jurídica de conteúdo ético, “fundada na garantia da intangibilidade da dignidade da pessoa humana, na aquisição da igualdade entre as pessoas, na busca da efetiva liberdade, na realização da justiça, e na construção de uma consciência que preserve integralmente esses princípios”.
    Embora atrocidades tenham sido cometidas pelo regime stalinista, bem como pelos regimes fascistas, foi, claramente, a experiência nazista que gerou a consciência universal de que se devia preservar, a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana, como uma conquista de valor ético-jurídico intangível.
    Assim, a dignidade humana é um valor máximo, supremo, de valor moral, ético e espiritual intangível, de tal sorte a afirmar com Paulo Otero, que o mesmo é “dotado de uma natureza sagrada e de direitos inalienáveis, afirma-se como valor irrenunciável e cimeiro de todo o modelo constitucional, servindo de fundamento do próprio sistema jurídico: O Homem e a sua dignidade são a razão de ser da sociedade, do Estado e do Direito”.
    Como exemplo interno, podemos destacar que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988, foi a dignidade da pessoa humana, que, como consectário, impõe a elevação do ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico, sendo-lhe atribuído o valor supremo de alicerce da ordem jurídica (art. 1°, III). A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida do homem, dela defluindo o respeito à integridade física e psíquica das pessoas, a admissão da existência de pressupostos materiais (patrimoniais, inclusive) mínimos para que se possa viver e o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade. 
    Segundo Kant, nas relações sociais existem dois valores importantes, que não se deve confundir: tudo tem um preço, ou tem uma dignidade. Quando a coisa tem preço, dela se pode dispor, bem como pode substituir pelo equivalente. Estando a coisa acima de todo e qualquer preço, não se encontrando nada que seja equivalente, estaremos diante da dignidade. Assim, a dignidade da pessoa humana não pode ser considerada como mercadoria, nem pode ser objeto da realização de fins outros que não seja o próprio ser humano. As coisas têm preço; as pessoas têm dignidade.
    Aliás, a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, não está sujeita a debate, ela existe independentemente de qualquer norma positiva. A qualidade de digno é uma condição da essência e existência do ser humano e, simultaneamente, um condicionante em atuar na sociedade e desse direito inato, decorre todos os direito personalíssimos.

    4. Conclusões

    Quando se trata de interpretar os direitos humanos, é preciso considerar que a pessoa humana é o valor primordial que cabe ao direito proteger, tanto no campo normativo internos das nações, quanto no plano internacional, lastreado no respeito às convenções e aos tratados internacionais reguladores da matéria.
    Neste quadro, destaca-se a dignidade da pessoa humana que funciona como uma fonte jurídico-positiva para os direitos fundamentais, o que lhes possibilita coerência e unidade. Dá-lhes uma noção de sistema. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, assim entendida como valor axiológico, serve como uma espécie de “lei geral” para os direitos fundamentais, que são especificações da dignidade da pessoa humana.
    Assim, cabe ao interprete considerar que “princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade ocupa posição de preeminência nos horizontes do sistema jurídico e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com elas se conectam”.
    Logo, conclusão que exsurge é que, na interpretação dos direitos humanos o interprete deve ter em mente, como bem maior a ser protegido, a dignidade do ser humano, de tal sorte que qualquer norma que viole ou colida com os preceitos fundamentais de respeito à dignidade humana, deve ser afastada por incompatibilidade ético-jurídica com os elevados princípios insculpidos na Declaração dos Direitos Humanos, princípios estes recepcionados pelas modernas Constituições dos países democráticos.

    5. Bibliografia

    AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, vol. n° 797, mar. 2002
    COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 4a. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
    FARIAS, Cristiano Chaves de. A proclamação da liberdade de não permanecer casado. Revista do Curso de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS Vol. 4, 2004.
    GHERSI, Carlos A. Derecho y reparación de daños. Buenos Aires: Editorial Universaidad, 2005.
    KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Trad. P. Quintela). Lisboa: Edições 70, 1996.
    MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 16a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
    MELO, Nehemias Domingos de. Estudos de direito latino americano (Org: BALESTERO, Gabriela Soares e BEGALLI, Ana Silvia Marcatto). Brasília: Kiron, 2014.
    MONTORO, André Franco. Cultura dos direitos humanos in Direitos Humanos: legislação e jurisprudência (Série Estudos, n.º 12), Volume I. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1999.
    OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública. O Sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Lisboa: Almedina, 2003.
    PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3 ed. São Paulo: Max Limonard, 1997.
    REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 16ª. ed. São Paulo:Saraiva, 1988.
    RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2004.
    _____. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2007.
    SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
    SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 16a. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

  • Autor: Nehemias Domingos de Melo
  • Sumario: 1. Introdução. 2. A lenta evolução dos direitos protetivos das crianças. 3. Formas de exploração sexual. 4. Comissão parlamentar de inquérito. 5. Combate à prostituição infantil no Brasil. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.

1. Introdução

No presente trabalho pretendemos fazer uma breve analise sobre a evolução dos direitos de proteção às crianças e adolescentes, em especial no Brasil, fazendo um retrospecto histórico do ponto de vista do direito internacional.
Em 1989, a comunidade internacional apresentou uma proposta que deu origem à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. O Brasil antes mesmo da proclamação dos resultados dessa conferência já havia adotado a doutrina da proteção integral das crianças e adolescente, contemplada na nossa Carta Constitucional de 1988 (art. 227). Essa doutrina restou melhor detalhada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n° 8.069 de 1990 que, de maneira minuciosa na sua parte geral tratou dos direitos fundamentais e dos direitos de convivência familiar ou mesmo comunitária, regulando os institutos da guarda e da adoção (arts. 1° a 85); e, na parte especial, tratando das políticas de atendimento, das medidas de proteção e da regulação do prodecimento quanto aos atos infracionais (arts. 86 a 199-E); bem como da atuação do Ministério Público, da Advocacia e dos crimes e das infrações administrativas (arts. 200 a 258-B).
Esses instrumentos jurídicos seriam suficientes para o combate a toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão praticadas contra os infantes, contudo, a realidade é outra.
Passados trinta anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) verifica-se que não basta uma boa lei, é preciso enfrentar outros desafios como o combate a pobreza, a miséria, ao analfabetismo enfim, combater todas as formas de exclusão social porque, se atentarmos bem, a raiz do problema encontra-se exatamente na total falta de recursos para famílias que muitas vezes se beneficiam da exploração de seus próprios filhos, como única forma de sobrevivência.
De outro lado, o Governo falha na implementação de políticas públicas de proteção à criança e adolescente, assim como na estruturação de uma rede social que unifique e direcione as verbas destinadas a esse fim.
O desafio que se coloca atualmente é a compatibilização dos avanços jurídicos, ocorridoss tanto no âmbito nacional quanto internacional, com relação à proteção integral das crianças, com a dura realidade das violações desses direitos no Brasil.

2. A lenta evolução dos direitos protetivos das crianças

Não há duvidas de que a exploração sexual comercial de crianças se constitui numa forma odiosa de coerção e violência contra crianças e adolescentes, podendo ser qualificada como uma espécie de trabalho forçado e formas contemporâneas de escravidão.
O que chama a atenção é o fato de que somente em meados do século XX é que a sociedade universal se apercebeu da necessidade de valorizar e proteger as crianças e os adolescentes.
Somente depois da Segunda Guerra Mundical e em face das atrocidades cometidas pelo nazismo é que a ONU resolveu criar um fundo internacional de assistências às crianças órfãs ou deslocadas de seus pais e família. Surge assim a UNICEF (United Nations International Child Emergency Fund), em 11 de outubro de 1946, com a missão de ajudar as crianças abandonadas do pós-guerra. Ainda que os objetivos do fundo fossem de apoio material, tinha-se pela primeira vez na história, o reconhecimento internacional de que as crianças necessitavam de atenção especial.
No ano de 1959 as Nações Unidas proclamaram sua Declaração Universal dos Direitos da Criança. Finalmente era formulado os direitos básicos dos menores, reconhecendo-se finalmente, que a criança é um ser humano muito especial, com características específicas, e que necessita de uma proteção especial do Estado e da sociedade.
A Declaração teve o mérito de proclamar pela primeira vez que a criança merece prioridade absoluta e deve ser sujeito de direitos, afirmando ainda, que a exploração e o abuso de crianças deveriam ser ativamente combatidos nas suas origens, atacando-se suas causas.
Ao longo dos últimos anos a preocupação mundial com essa problemática tem aumentado, tendo merecido dos orgnismo internacionais uma maior atenção. Nesse sentido um dos documentos mais importantes com relação ao tema foi a declaração do Primeiro Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, que foi realizado em Estocolmo no ano de 1996, cujo documento definiu Exploração Sexual como sendo:

“O uso de uma criança para propósitos sexuais em troca de dinheiro ou favores em espécie entre a criança, o cliente, o intermediário ou agenciador e outros que se beneficiam do comércio de crianças para esse propósito”.

Quando se fala em exploração sexual comercial de crianças devemos incluir, além da prostituição de crianças, a pornografia infantil, o turismo sexual infantil e outras formas de sexo comercial onde uma criança se engaja em atividades sexuais que têm necessidades essenciais satisfeitas, tais como comida, abrigo ou acesso à educação. Ele inclui as formas de sexo comercial, onde o abuso sexual de crianças não é interrompido ou relatado por membros da família, devido aos benefícios obtidos pelo agregado familiar do agressor. Também inclui, potencialmente, casamentos arranjados com crianças com idade inferior a 18 anos, onde a criança não tem livremente consentido o casamento e onde a criança é abusada sexualmente.

3. Formas de exploração sexual

Para o leigo, quando se fala em exploração sexual de menores, a idéia matriz que surge é a prostituição. Contudo, conforme já registramos, existem outras formas de exploração sexual, tais como a pornografia (tanto a produção, como a distribuição e o consumo); o turismo sexual e a venda e tráfico de crianças e adolescentes para fins comerciais e sexuais.
Quando se trata da prostituição de crianças e adolescentes, emerge uma dúvida que foi levantada pela socióloga Marlene Vaz: seria a criança prostituta ou prostituída?
Por obvio que a criança é vítima desse tipo de exploração. Ela é prostituida e, mais grave, como forma de exploração econômica que se assemelha em muito com o trabalho escravo.
Da mesma forma o tráfico de crianças que, mais das vezes, está também associado à prostituição, tendo nos dois fios da meada, finalidade econômica de quem promove a exploração.
Sobre a questão do tráfico de menores cumpre esclarecer que no mercado do sexo, as relações de exploração se dão em rede, onde há busca de clientes, busca de corpos, e busca de lucro. Nesse contexto, as relações de proteção de direito não existem, em seu lugar há a mercantilização da infância, “o corpo da criança e do adolescente se transforma em valor de uso e em valor de troca em âmbito nacional e internacional”.

4. Comissão parlamentar de inquérito

Na Câmara dos Deputados foi criada em 09 de fevereiro de 2012, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), sob o título – Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – (CPICRIAN), destinada a apurar denúncias de turismo sexual e exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, conforme diversas matérias publicadas pela imprensa.
O que motivou a criação e instalação desta CPI foram as diversas denúncias sobre da exploração sexual de crianças e adolescentes em todo o território brasileiro, assim como de redes criminosas destinadas a promover essa prática ilícita, com questionamentos acerca das ações estatais adotadas para combatê-la. Dentre os documentos que motivou a criação dessa CPI, um deles chama a atenção pelo conteúdo de dados colhidos no Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, cujo banco de dados apontava à época da instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito aproximadamente 52 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, registradas entre os anos de 2003 e 2011.
Ao final dos trabalhos os parlamentares sugeritram diversas medidas, além de proposituras de caráter legislativas. Dentre as propostas, destacamos: 1. Plano Emergencial de Atendimento à Criança e ao Adolescente (objetiva, entre outras atividades a reformulação das funções das Delegacias de Crianças e Adolescentes, com vistas a um trabalho de orientação, e não somente de punição; tratamento psicológico adequado às vítimas de exploração sexual e suas famílias); 2. Programa Público de Planejamento Familiar (já que a maternidade indesejada e a paternidade irresponsável são fatores que contribuem para a prostituição e exploração infanto-juvenil) 3. Informação às famílias sobre a prostituição e adoção (inclusão noscurrículos escolares, de disciplinas que contribuam para a prevenção e o combate à exploração sexual de adolescentes); 4. Liberação rápida e efetiva de recursos orçamentários para os diversos programas de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes (especialmente para os conselhos tutelares e para as delegacias especializadas no atendimento a crianças e adolescentes; 5. Adoção de políticas que gerem aumento de emprego; dentre outras medidas.

5. Combate à prostituição infantil

O governo brasileiro lançou uma campanha, em 15 maio de 2013, intitulada “Faça Bonito, Proteja Nossas Crianças”, com a finalidade de combater a violência e a exploração sexual de crianças e adolescentes. Esta atividade antecedia ao dia nacional de luta contra o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, realizado todos os anos no dia 18 de maio.
A campanha envolveu mais três mil cidades de todos os estados brasileiros e consistiu em palestras, seminários, workshops, caminhadas, entre outras atividades, tudo com a finalidade de conscientizar a população para a importância de se promover a defesa das crianças e dos adolescentes contra a violência sexual.
A ação do governo, coordenado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República contou com o apoio de entidades do terceiro setor, destacando-se a parceria realizada com o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes.
O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil é referência para a sociedade civil organizada e para as três instâncias do poder federativo brasileiro. Nele estão as diretrizes que oferecem uma síntese metodológica para a reestruturação de políticas, programas e serviços de enfretamento à violência sexual, consolidando a articulação como eixo estratégico e os direitos humanos sexuais da criança e do adolescente como questão estruturante.
Um exemplo dos frutos dessa campanha é que vários Estados e Muncicíos, além de instituições, tem posto em prática ações com vista a maior conscientização da população com vista a maior proteção do menor e adolescente. Por exemplar destaco que o Conselho Tutelar de Carapicuíba (cidade da Grande São Paulo) realizou, nos dias 18, 19 e 20 de maio de 2020, campanha contra o abuso sexual de crianças e adolescentes, intitulada “Faça Bonito, Proteja nossas Crianças”.

6. Conclusão

Por obvio que não bastam ações isoladas para erradicar esse mal que aflige toda a sociedade brasileira e mundial. Muito mais do que campanhas publicitárias ou de conscientização da população é preciso que sejam atacadas as causas em sua raiz.
Programas de inclusão social, como as que o governo brasileiro tem adotado nos últimos anos, tais como o programa de distribuição de renda, de moradia para as populações de baixa renda, de inclusão social nas escolas, dentre outros, podem, a médio prazo, contribuir substancialmente para a minoração desse grave problema social.
De outro lado, a legislação deve ser aplicada com mais rigor, tanto do ponto de vista das medidas preventivas quanto das medidas punitivas. Assim, espera-se uma ação mais eficiente das polícias tanto as militares dos Estados com suas ações preventivas, quanto da judiciária (tanto as estuduais quanto a federal), na repressão, investigação e detenção daqueles que cometem esse tipo de delito.
Nesse sentido o Ministério Público pode cumprir um papel fundamental, pois lhe cabe investigar e propor punições, além de lhe ser possível trabalhar junto com a sociedade para prevenir essas práticas e garantir a proteção necessária às vítimas, tanto no âmbito administrativo quanto judiciário.
Aliás, o Ministério Público e o Poder Judiciário são os responsáveis por garantir que os direitos desse segmento da população se realizem. É bem verdade que pouco tem sido feito no sentido de um enfrentamento mais rigoroso dessa problemática, pois lhes cabe, em última análise, exigir do Poder Executivo que os serviços sociais públicos como escolas, serviços de saúde e assistência social, sejam ofertados em quantidade e qualidade suficiente para o cumprimento das suas funções estabelecidas em lei.
Nesse cenário fica difícil acreditar na concretização dos direitos assegurados às crianças e adolescentes, principalmente aqueles insculpidos no artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhes garantes os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana: “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (Lei n° 8.069/90, art. 3°).
Não devemos olvidar que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição Cidadã de 1988, é a dignidade da pessoa humana que, como consectário, impõe a elevação do ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico, sendo-lhe atribuído o valor supremo de alicerce da ordem jurídica. A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida do homem, dela defluindo o respeito à integridade física e psíquica das pessoas, a admissão da existência de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver e o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.
Quer dizer, a cada esquina encontramos uma realidade que se opõe tenazmente ao preceituado em lei. Para as crianças e os adolescentes que são exploradas sexualmente, a dignidade humana não passa de uma grande utopia.

7. Bibliografia
FALEIROS, Vicente de Paula. A violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de indicadores: a crítica do poder, da desigualdade e do imaginário. Cecria, em Brasília de 01 a 02/12/97. Disponível em:
LIBÓRIO, R.M.C. Reflexões sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes. Mimeo: Trabalho apresentado no XXVIII Congresso Interamericano de Psicologia. Chile, 2001.
MELO, Nehemias Domingos de. Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum, 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2011
RIGHETTI, Carmen Sílvia; Alapanian, Silvia. O Poder Judiciário e as Demandas Sociais. Disponível em <http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c-v8n2_carmen.htm>, acesso em 27/10/2013.
VAZ, Marlene. Meninas de Salvador. Pesquisa sobre a população infanto-juvenil prostituída. Cedeca/Unicef, Bahia, 1994.
Exploração sexual
Wikipédia. Exploração sexual, disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Explora%C3%A7%C3%A3o_sexual#cite_note-3>, acesso em 27/10/2013.

 Artigo esccrito em comemoração aos 30 anos do ECA.
 Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.
 CF, Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
 Wikpédia, disponível em < HYPERLINK “http://en.wikipedia.org/wiki/Commercial_sexual_exploitation_of_children” http://en.wikipedia.org/wiki/Commercial_sexual_exploitation_of_children>, acesso em 25/10/2013.
 VAZ, Marlene. Meninas de Salvador. Pesquisa sobre a população infanto-juvenil prostituída, p. 8.
 FALEIROS, Vicente de Paula. A violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de indicadores, p. 19.
 Relatório final aprovado em 04/6/2014. Presidente: Deputada Erika Kokay; Relatora: Deputada Liliam Sá.
 O dia 18 Maio é dedicado ao Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Criado pela Lei Federal 9.970/00, é uma conquista que demarca a luta pelos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes no território brasileiro e que já alcançou muitos municípios do nosso país.
 O Plano foi aprovado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em 12 de julho de 2000 e foi revisado durantesn os anos de 2012 e 2013, sendo entregue para a sociedade na semana do dia 18 de maio de 2013.
 RIGHETTI, Carmen Sílvia e ALAPANIAN, Silvia, O Poder Judiciário e as Demandas Sociais.
 MELO, Nehemias Domingos de. Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum, p. 24.

  • Autor: Nehemias Domingos de Melo

    Sumário: 1. Da garantia legal, contratual e estendida no CDC. 2. Da diferença entre prescrição e decadência. 3. Da prescrição no CDC. 4. Quanto à decadência. 5. Bibliografia.

    1. Da garantia legal, contratual e estendida no CDC

    Cumpre destacar inicialmente que existem no mercado consumerista, três tipos de garantia sobre produtos e serviços quais sejam: a garantia legal, a contratual e a estendida, vejamos as peculiaridades de cada uma delas.
    A garantia legal estabelecida no Código de Defesa do Consumidor prevê que para os produtos e serviços não duráveis esse prazo será de 30 (trinta) dias e, quando tratar-se de produtos ou serviços duráveis, o prazo passa a ser de 90 (noventa) dias. Estes prazos não estão expresso na lei, porém uma leitura combinada dos artigos 18 e 26 da Lei n° 8.078/90 nos permite chegar a esta conclusão. Significa dizer que quando o fornecedor entrega o termo de garantia informando que o produto (durável, por exemplo) é garantido pelo prazo de um ano, a este prazo deverá ser adicionado o prazo de garantia legal de três meses, de tal sorte que o produto estará garantido pelo período de um ano e três meses.
    A lei consumerista explicita, claramente, que a garantia contratual é completar à legal e será conferida mediante termos escrito (art. 50), de tal sorte a afirmar que esta garantia nunca poderá ser excluída, mesmo a pretexto de que o fornecedor estaria fornecendo outro tipo de garantia. Se o fornecedor ofertar garantia convencional, estará oferecendo um plus ao consumidor que terá direito à garantia legal, somada à garantia contratual.
    Esclareça-se por oportuno, que produtos não duráveis são aqueles que são consumidos com uma única utilização ou que se vai consumindo com as utilizações sucessivas. Já os produtos duráveis, são aqueles que têm uma vida útil mais duradoura, ou seja, cuja utilização, mesmo que continuada, não deteriora suas qualidade, característica e utilização.
    Há um dever a ser cumprido pelo fornecedor de produtos ou serviços que implica na obrigação de somente “colocar no mercado de consumo produtos ou serviços de boa qualidade, vale dizer, sem vícios ou defeitos que os tornem impróprios ao uso e consumo ou lhes diminuam o valor”.
    Nesse norte é importante esclarecer o que seja defeito e vício. Assim, o produto é defeituoso quando não oferecer a segurança que legitimidade dele se espera no que diz respeito à sua apresentação, uso e riscos que razoavelmente dele se espera e a época em que foi colocado no mercado de consumo (art. 12, § 1°, I a II). Será considerado viciado o produto que apresente disparidade no que diz respeito à qualidade e a quantidade e também aqueles que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e, mais importante, que lhes diminuam o valor (art. 18, caput). Temos que desta forma, defeituoso será o produto ou serviço que, de alguma maneira possa oferecer perigo à incolumidade físico-psíquico do consumidor ou do utente (bystander). De outro lado, será viciado o produto ou serviço que oferecer riscos de causar um dano exclusivamente material, isto é econômico, ao consumidor adquirente em face da frustração quanto a expectativa de uso, com relação à qualidade, a quantidade ou a diminuição de seu valor.
    Quando o Código de Defesa do Consumidor estabelece que a garantia legal independe de termo expresso (art. 24) quer dizer que, independentemente do fornecedor entregar ou não o certificado de garantia, o consumidor tem a proteção legal da garantia, pelo prazo mínimo assegurada pela legislação. Tanto é assim que nossos Tribunais têm decidido que a garantia quando oferecida pelo fornecedor, soma-se à garantia legal, isto é, ela é complementar, em perfeita consonância com o prescrito na legislação consumerista (Lei 8.078/90, arts. 4°, II, ‘d’, 8° ao 24 e 50).
    Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento consolidado no sentido de que a garantia legal é obrigatória, dela não podendo se esquivar o fornecedor. Paralelamente a ela, porém, pode o fornecedor oferecer uma garantia contratual, alargando o prazo ou o alcance da garantia legal. A lei não fixa expressamente um prazo de garantia legal, porém uma interpretação teleológica e sistemática do CDC permite integrar analogicamente a regra relativa à garantia contratual, estendendo-lhe os prazos de reclamação atinentes à garantia legal, ou seja, a partir do término da garantia contratual, o consumidor terá 30 (trinta) dias quando tratar-se de bens não duráveis ou 90 (noventa) dias quando tratar-se de bens duráveis, para reclamar por vícios de adequação surgidos no decorrer do período desta garantia.
    Para o mestre Riazzato Nunes, esse prazo deve ter seu início contado a partir da entrega efetiva do produto ou com o término da execução do serviço, leitura feita a partir do previsto no art. 26, § 1°, da lei consumerista, porém faz a ressalva de que se o fornecedor ofertou garantia contratual de um ou dois anos, o direito de reclamar se estende por até 30 ou 90 dias após o término dessa garantia que foi ofertada.
    No que diz respeito a garantia estendida devemos deixar claro que esta é uma prática de mercado que se assemelha mais a um seguro do que a uma garantia propriamente dito. Quer dizer, o adquirente vai pagar um valor adicional para ter garantia por um prazo maior do que aquele que regularmente seria oferecido. Significa dizer que o consumidor firmará dois contratos: um de aquisição do produto ou serviço; e, outro referente a garantia estendida.
    A garantia estendida começa a vigorar após o término do prazo da garantia contratual do produto ou serviço.
    Advirta-se por fim que a contratação deste seguro não é obrigatória, portanto é facultativa. Se o fornecedor condicionar a venda do produto ou serviço à aquisição da garantia estendida, estaremos diante de uma venda casada, o que é vedado pela lei consumerista (art. 39, I).

    2. Da diferença entre prescrição e decadência

    Com relação à prescrição e a decadência, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu regras próprias, de maneira simples, porém objetiva. Pela sistemática que o Código adotou, a prescrição se circunscreve aos acidentes de consumo (arts. 12 a 14), enquanto que a decadência se aplicaria aos casos de vícios de produtos (arts. 18 a 22). Assim, toda vez que se estiver frente a uma indenização decorrente de acidente de consumo, utilizar-se-ia da prescrição insculpida no art. 27. Se de outro lado, o problema for de vício de produto, aplica-se a regra da decadência inserta no art. 26.
    Distinguir prescrição de decadência é algo, no mais das vezes, tormentoso porquanto institutos assemelhados, porém de resultados práticos diversos. Para não fugirmos à regra, tentaremos de maneira sucinta, esclarecer ambos os conceitos. Poderíamos dizer que prescrição é a causa de extinção temporal da pretensão de ver condenado o violador de um direito à sua justa reparação; enquanto que a decadência é a extinção de um direito não reclamado no prazo assinalado. Assim, a prescrição fulmina o direito de ação em dada situação regulamentada, nada impedindo que se exerça o mesmo direito por outro modo assegurado na legislação, enquanto que a decadência fulmina de morte o próprio direito, impedindo que o seu detentor possa formular pedido com base neste direito extinto.

    3. Da prescrição no CDC

    O Código de Defesa do Consumidor estabelece que prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por acidente no fornecimento de produtos ou serviço, esclarecendo ainda que os prazos iniciam-se a partir do conhecimento do dano e de sua autoria (art. 27).
    Veja-se que o Código conjuga dois fatores, quais sejam: a) o conhecimento do dano e, b) o conhecimento da autoria. Contudo, há outro elemento que deve ser reconhecido anteriormente: que este dano tenha sido causado por um defeito no produto ou serviço ofertado ao consumidor.
    Explica-se facilmente o fato de a norma estabelecer as duas condições. É perfeitamente possível acontecer de o consumidor sofrer um dano e não conseguir de imediato identificar o responsável pela atividade ou pelo produto. Nesta situação, não haveria lógica para que o prazo prescricional estivesse a correr porquanto isto poderia ser extremamente prejudicial ao consumidor. Somente depois do conhecimento do responsável pelo serviço ou produto causador do dano é que começará a correr o prazo prescricional, solução que se afigura mais justa.
    A doutrina majoritária, senão em sua totalidade, considera que a prescrição disciplinada no artigo citado se aplica exclusivamente aos casos de acidentes de consumo, em razão de o Código ter sido taxativo ao afirmar que a prescrição refere-se aos acidentes de consumo previstos na seção II (da responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço), do capítulo que trata da qualidade de produtos e serviços e da reparação dos danos. Por essa ótica, todas as demais ações que sejam originárias das relações de consumo, deverão utilizar-se dos prazos prescricionais do Código Civil, especialmente os prazos do art. 206.
    Finalmente, aspecto que releva comentar é que as causas que suspendem ou interrompem a prescrição devem ser as enumeradas no Código Civil na exata medida em que não existe no Código de Defesa do Consumidor nenhuma causa obstativa da prescrição. Assim, nas relações de consumo, aplica-se, subsidiariamente, as normas do Código Civil no que diz respeito à suspensão e a interrupção da prescrição.

    4. Quanto à decadência

    O instituto da decadência está exclusivamente ligado à questão da garantia de tal sorte que, mesmo nos casos de vícios de produtos, se o prejuízo do consumidor se materializou, seja moral ou material, a questão deverá ser vista sob a ótica da prescrição porque estaremos frente a um dano, conforme já tivemos oportunidade de registrar.
    Ao tratar dos vícios de produtos, o Código fixou o prazo de 30 (trinta) dias para que o fornecedor, após notificado, sane o vício apontado no produto (Lei n° 8.078/90, art. 18), sob o risco de não o fazendo, autorizar o consumidor a promover a correspondente ação, visando, alternativamente, a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso (I); a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos (II); ou o abatimento proporcional do preço (III).
    Este prazo é decadencial e regula-se pelo art. 26 que estabelece que o direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em 30 (trinta) dias, em se tratando de fornecimento de serviço e de produto não duráveis (I); e de 90 (noventa) dias, quando tratar-se de fornecimento de serviço e de produto duráveis (II).
    Estes prazos contam-se a partir da entrega efetiva do bem ou do término da execução do serviço (art. 26, § 1°), excetuando-se os vícios ocultos, cujo prazo prescricional contar-se-á do momento em que ficar evidenciado o defeito (art. 26, § 3°).
    Diferentemente da prescrição, neste caso, o Código do Consumidor definiu expressamente as causas que obstam a decadência, nas seguintes condições: a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca (art. 26, § 2°, I), e a instauração do inquérito civil, até seu encerramento (art. 26, III).

    5. Bibliografia
    DENARI, Zelmo et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
    MELO, Nehemias Domingos de. Dano moral nas relações de consumo, 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
    NERY JUNIOR, Nelson et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
    RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Curso de direito do consumidor, 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
    SANTANA, Héctor Valverde. Prescrição e decadência nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
    SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

     Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

     Ver Nelson Nery Júnior in Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 335.
     DENARI, Zelmo. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 144.
     STJ – REsp: 967623 RJ 2007/0159609-6, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 16/04/2009, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: 20090629, DJe 29/06/2009.
     RIAZZATO NUNES, Luiz Antonio. Curso de direito do consumidor, p. 353 e 363.
     MELO, Nehemias Domingos de. Dano moral nas relações de consumo, 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 154.
     Nesse sentido ver Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 277 e Héctor Valverde Santana, Prescrição e decadência nas relações de consumo, p. 77, dentre outros.

  • Autor: Nehemias Domingos de Melo

    Sumário: 1. Dos princípios constitucionais aplicáveis às relações de consumo. 2. Dos princípios na legislação consumerista. 3. Princípio da boa-fé objetiva (3.1 Da transparência; 3.2 Dever de informação; 3.3 Dever de segurança). 4. Da vulnerabilidade e da hipossufuciência (4.1 Vulnerabilidade; 4.2 Hipossuficiência).. 5. Bibliografia

    1. Dos princípios constitucionais aplicáveis às relações de consumo

    Importante destacar por primeiro que não se pode interpretar o sistema jurídico brasileiro sem que se faça uma análise dos princípios que emanam da Constituição Federal, isto porque a Constituição enquanto lei máxima se encontra no ápice do sistema jurídico, caracterizando-se “pela imperatividade de seus comandos, que obrigam não só as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado, como o próprio Estado”.
    Assim, a Constituição, no Estado Democrático de Direito, é a pedra angular de toda a ordem jurídica, a lei fundamental, à qual devem adaptar-se todas as demais leis e da qual o interprete não pode se afastar. É, por assim dizer, a lei das leis, que submete todas as pessoas e o próprio Estado, estabelecendo suas funções e os seus limites, bem como assegurando os direitos e garantias individuais dos cidadãos e os procedimentos aptos a defendê-los.

    De destacar também que as funções do Estado contemporâneo foram modificadas no decorrer do processo histórico, devido à mudança dos paradigmas do Estado liberal para o Estado Democrático e Social de Direito e nesse quadro a Constituição Federal deve ser vista como a regra fundamental do Estado, na medida em que estrutura o poder e assegura os direitos fundamentais, trazendo em seu bojo os fatos, os anseios, aspirações e valores da própria sociedade que organiza e estrutura.

    Não é por outra razão que Rizzatto Nunes afirma que os princípios constitucionais “exercem uma função importantíssima dentro do ordenamento jurídico-positivo, já que orientam, condicionam e iluminam a interpretação das normas jurídicas em geral” e, por serem normas qualificadas, acabam por dar coesão ao sistema jurídico e, uma vez identificados, agem como regras hierarquicamente superiores às próprias normas positivadas no conjunto das proposições escritas.

    Nesse quadro, as disposições do Código de Defesa do Consumidor devem ser interpretadas em consonância com os princípios fundamentais da Constituição Federal, de forma harmônica e sistêmica, considerando-se, especialmente e dentre outros, os princípios fundamentais da soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana (atrelado ao piso vital mínimo) e da isonomia, bem como os princípios da livre iniciativa e da ordem econômica.

    2. Dos princípios na legislação consumerista

    O Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) é uma lei de caráter eminentemente principiológica na exata medida em que fixa princípios e enumera cláusulas gerais, deixando ao aplicador da norma, frente ao caso concreto, estabelecer os limites de sua aplicação.
    Além disso, o Código também utiliza de diversas expressões indeterminadas, como por exemplo, verossimilhança, hipossuficiência, abusividade, desvantagem exagerada, dentre outras, permitindo ao aplicador da norma, com base nas experiências do que ordinariamente acontece, explicitar o alcance do conteúdo destas expressões.
    Porém, como adverte Sergio Cavalieri Filho, não se há de confundir a liberdade outorgada ao aplicador da norma em face das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminado, com juízo discricionário porque os princípios vão condicionar a atividade do interprete lhe impondo rumos e limites que não podem ser contrariados.
    Nesse passo, cabe agora analisar os princípios que o Código de Defesa do Consumidor procurou concretizar, enquanto norma de ordem pública e de interesse social (art. 1°), nascida por expressa determinação constitucional (ADCT, art. 48), que se torna prevalente em relação a quaisquer outras normas que com ela colida, quando tratar-se de relação de consumo. Neste contexto serão analisados, pela importância, os princípios da boa-fé objetiva (e os deveres anexos decorrentes desse princípio), da vulnerabilidade e da hipossuficiência.

    3. Princípio da boa-fé objetiva

    O princípio da boa-fé objetiva é um dos standard mais importante do Código de Defesa do Consumidor. Por esse princípio, o que se espera é que os contratantes mantenham uma conduta ética de comportamento, atuando com honestidade, lealdade e probidade durante a fase pré-contratual, contratual e pós-contratual.
    Não se confunda a boa-fé objetiva, de que trata a lei consumerista, com a boa-fé subjetiva que é, em última análise, aquela que se baseia na perquirição sobre o estado de ânimo interior do contraente (intenção) de que nos fala, por exemplo, o Código Civil quando trata da posse e do usucapião. A boa fé objetiva não está ligada ao ânimo interior das pessoas envolvidas na relação, em verdade ela trata de um padrão geral, modelo ideal de conduta que se espera de todos os integrantes de uma dada sociedade. Tal princípio cumpre papel de tamanha relevância nas relações negocias que Cláudia Lima Marques afirma de maneira categórica que “a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC”.
    A boa-fé objetiva cumpre também uma função de controle na exata medida em que limita o exercício dos direitos subjetivos das partes envolvidas na relação negocial, de tal sorte a evitar o abuso de direito em todas as fases da relação jurídica. Este princípio é de tamanha importância que atualmente ele permeia todas as relações negociais, mesmo aquelas que se encontrem fora do âmbito do Código de Defesa do Consumidor, porquanto é princípio adotado pelo novo Código Civil no que diz respeito às cláusulas gerais nos negócios jurídicos e, nas relações contratuais.
    O princípio da boa-fé está expressamente previsto no Código de Defesa do Consumidor no capítulo que trata da Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4°, III) e no capítulo que disciplina a proteção contratual, especialmente quando trata das cláusulas contratuais consideradas abusivas (art. 51, IV).
    Neste aspecto, cumpre especial relevo a atuação do juiz tendo em vista que é ele quem deve procurar a real intenção da norma e dela extrair, em face de cada caso concreto, os limites de aplicação do princípio da boa-fé tendo em vista que o princípio da autonomia da vontade cede lugar ao princípio decorrente da lei cujo “primado não é a vontade, é da justiça, mesmo porque o poder da vontade de uns é maior do que o de outros”.
    Advirta-se ainda, que as regras da boa-fé objetiva não se aplicam somente aos fornecedores, aplica-se também aos consumidores. É uma via de duas mãos “une fornecedor e consumidor, evitando que a proteção concedida pelo microssistema do CDC sirva de escudo para consumidores que, agindo contrariamente ao princípio da boa-fé objetiva, busquem a reparação de prejuízos para cuja produção tiveram decisiva participação”.
    Do princípio da boa-fé decorrem os chamados “deveres anexos”, quais sejam, da transparência, da informação e da segurança, que veremos a seguir.

    3.1 Da transparência

    Diz o Código do Consumidor que a Política Nacional das Relações de Consumo terá como objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, respeitado à sua dignidade, saúde e segurança, além da proteção dos interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo (art. 4°, caput). Este princípio que é regra geral ganha reforço adicional em face do que é estatuído no art. 46, verbis: “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”.
    Transparência, conforme ensina Claudia Lima Marques, “significa informação clara sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo”.Considere-se ainda que a transparência, como princípio da Política Nacional de Consumo, “é clareza qualitativa e quantitativa da informação que incumbe às partes conceder reciprocamente, na relação jurídica”.
    Este princípio encontra ressonância prática no capítulo que trata da proteção contratual (CDC, art. 46). Nesse passo, temos que há como uma espécie de garantia de “exoneração dos consumidores em relação às cláusulas contratuais que não foram prévia e adequadamente apresentadas ao seu conhecimento ou formulados por redação que dificulte a sua compreensão”. Significa dizer que o consumidor não estará vinculado ao contrato se demonstrar que não lhe tinha sido oportunizado conhecer seu inteiro teor, com a devida antecedência.
    Também no capítulo em que trata das condições de apresentação da oferta ao preceituar que a apresentação de produtos ou serviços deve assegurar ao consumidor informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa de tal sorte que possa ter conhecimento de suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade, além dos riscos que eventualmente possam representar à saúde e segurança dos adquirentes (CDC, art. 31).
    Há nesse dispositivo uma demonstração clara de que o legislador pátrio deu grande ênfase ao aspecto de proteção preventiva do consumidor, fazendo com que a informação preambular, a comunicação pré-contratual, sejam verdadeiras, de fácil compreensão, precisa e em língua portuguesa porque é na fase pré-contratual que a decisão de compra é efetivamente tomada pelo consumidor.
    Verifica-se assim, que a transparência guarda estreita relação com o dever de informação e é mais do que um simples elemento formal já que poderá afetar a essência do negócio, tendo em vista que a informação repassada integra o contrato (CDC, arts. 30, 33, 35, 46 e 54) ou se ausente significa falha na qualidade do produto ou serviço (arts. 18, 20 e 35), de tal sorte a afirmar que o princípio da transparência concretiza a idéia de reequilíbrio das forças nas relações de consumo, como forma de alcançar a almejada justiça contratual.

    3.2 Dever de informação

    É direito básico do consumidor receber informações adequadas e claras, sobre os produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo, inclusive com especificação de quantidade, características, composição, qualidade e preço, além dos eventuais riscos que o produto apresente, para que ele possa exercer de forma livre e consciente a sua opção quanto a escolha do produto ou serviço (Lei n° 8.078/90, art, 6°, III).
    Esse dever de informação pode se materializar de várias formas. As informações podem ser fornecidas nas embalagens e rótulos dos produtos, na propaganda veiculada por qualquer forma, na publicidade, nos impressos e nos orçamentos.
    Ademais, este dever de informação está explícito no Código de Defesa do Consumidor que, em outras passagens, volta a exigir respeito ao dever de bem informar como, por exemplo, quando trata da obrigação de informação quanto aos produtos perigosos ou nocivos à saúde ou à segurança (art. 9°); quando trata da informação publicitária (art. 30 e 31); quando estabelece que o fornecedor de serviços é obrigado a entregar, previamente, orçamento detalhado ao consumidor (art. 40); quando trata dos bancos de dados e cadastros de consumidores, ao prever que é direito do consumidor, ser informado de que se está armazenado dados a seu respeito (art. 43, § 2°); quando trata das informações constantes dos contratos de consumo que não obrigarão os consumidores se não lhes for dada oportunidade de pleno conhecimento de seu conteúdo (art. 46); quando trata das informações quanto ao preço, juros e prestações, que devem preceder a outorga de crédito (art. 52); ou ainda, quando trata de defeitos de produtos e serviços dizendo que os fornecedores podem ser responsabilizados, inclusive, por informações insuficientes ou inadequadas quanto aos riscos de utilização (caput dos arts. 12 e 14, parte final).
    Verificamos assim, que além do direito à informação quanto a fruidez, segurança, qualidade e preço, genericamente tratada no art. 6°, inciso III, o Código prevê outras hipóteses de obrigatoriedade de informação, inclusive com o vinculação da mesma ao contrato a ser firmado, de tal sorte que se pode afirmar que a informação, enquanto direito do consumidor, não se restringe à comunicação escrita, podendo ser verbal e, até mesmo, gestual.
    Como já dissemos, a informação tal qual prevista na lei consumerista pode ser veiculada por qualquer meio de comunicação como também pode ser representada pela fala do preposto da empresa no atendimento telefônico, no preço fornecido verbalmente pelo feirante ao comprador, no atendimento prestado pela recepcionista do hotel esclarecendo quais os equipamentos à disposição do hospede, nas informações verbais prestada pelo garçom do restaurante quando complementam as informações constantes do cardápio, nas informações verbais fornecidas pelo gerente do banco quanto aos benefícios de produtos ou financiamentos, dentre outras.
    Discorrendo sobre a amplitude do conceito de informação, Claudia Lima Marques assevera que “da mesma maneira (que) os escritos particulares, por exemplo, pequenas promessas feitas por prepostos ávidos em vender (art. 34 do CDC), passam agora a integrar o contrato, como obrigações de fazer. A norma pode ser ampliada para atingr (sic) todos os anexos e documentos conexos contratuais. A medida amplia consideravelmente o conteúdo do contrato a ser firmado entre consumidor e fornecedor”.
    A regra geral adotada pelo Código, no que diz respeito às informações vinculadas ao produto ou serviço, resume-se ao “prometeu, cumpriu”. A sanção para o não cumprimento da obrigação decorrente da informação vem expresso em diversas passagens. Por exemplo: com relação a informação/publicidade que obriga o fornecedor (art. 30), a sanção vem expressa no art. 35 que fornece ao consumidor instrumentos para exigir o cumprimento do prometido. Outras independem de expressa previsão como no caso dos contratos com informações insuficientes ou redigidos de forma dúbia (art. 46), a sanção decorre do próprio artigo porquanto em sua primeira parte é enfático ao preceituar que “os contratos que regulam as relações de consumo NÃO OBRIGARÃO os consumidores, senão lhes for dada oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo”. Logo, se as informações não forem clara, completas e de forma inteligível, o consumidor não estará obrigado ao seu cumprimento, podendo pleitear, judicialmente, a declaração de nulidade de cláusulas ou do contrato como um todo.
    Assim, a transparência enquanto maior clareza e veracidade a respeito de qualquer produto ou serviço, somente será alcançada através de uma maior troca de informações entre o fornecedor e o consumidor na fase pré-contratual, de tal sorte a se afirmar que o dever de informar é um reflexo do princípio da transparência.

    3.3 Dever de segurança

    Anote-se por primeiro, que a responsabilidade que o Código de Defesa do Consumidor impõe aos fornecedores, tanto de produtos quanto de serviços, além dos deveres de qualidade e de informação, um dever de segurança. Isto quer dizer que aquele que coloca um produto ou um serviço no mercado tem a obrigação legal de ofertá-lo sem risco ao consumidor no que diz respeito à sua saúde, à sua integridade física e ao seu patrimônio (CDC, art. 8° a 10, 12 § 1° e 14 § 1°).
    Este dever de segurança não é absoluto porque o Código de Defesa do Consumidor não proíbe a colocação no mercado consumidor de produtos potencialmente perigosos, em verdade tal dever ancora-se na idéia de defeito. De fato, a própria lei consumerista quando define o que seja produto ou serviço defeituoso explicita que são aqueles que não oferecem a segurança que legitimamente deles se espera, consideradas as circunstâncias de fornecimento tais como a apresentação, o uso e os riscos esperados e a época da colocação em circulação ou fornecido (CDC, art. 12, § 1° e 14, § 1°).
    Tanto é verdade que diversos produtos, naturalmente perigosos, estão colocados no mercado e são imprescindíveis aos seres humanos. Dentre exemplos clássicos podemos destacar “a quase totalidade dos medicamentos, (que) em razão de sua natureza, ostenta índice normal de nocividade que, com vista à responsabilidade do fornecedor, será tolerado quando vier acompanhado de bulas explicativas”.Neste caso, a nocividade será ilidida desde que o produto seja acompanhado de explicações quanto à sua destinação e uso (bula) de tal sorte a afirmar que o dever de informação, que deverá ser ostensiva, é complementar ao dever de segurança. Significa dizer que se o consumidor for adequadamente informado sobre a nocividade ou periculosidade do produto e, se ainda assim promover o uso inadequado ou impróprio do mesmo, não poderá responsabilizar o fornecedor, pois estaremos diante de culpa exclusiva da vítima ou, eventualmente, de terceiro.
    Desta forma, temos que o dever de segurança está implícito em toda e qualquer relação de consumo tanto é assim que, conforme afirma Roberto Senise Lisboa, “a responsabilidade pelo fato do produto e serviço é embasada no dever de segurança que o fornecedor tem de exercer a sua atividade sem acarretar danos à vida, saúde ou outros direitos extrapatrimoniais do consumidor, sob pena de responder pela reparação do prejuízo oriundo de um acidente de consumo”.
    É por essa razão que a jurisprudência pátria vem reconhecendo que acidentes de consumo ocorridos em shoppings centers e supermercados, para citar um exemplo, tanto no que diz respeito a segurança pessoal do consumidor, quanto a seus pertences, acarreta um dever indenizatório em face do dever de segurança ínsito na atividade negocial ali desenvolvida. Assim, o furto de veículo no estacionamento, seqüestro relâmpago do usuário, queda em razão de piso escorregadio, dentro outras, gera responsabilidade para o detentor da atividade em razão do dever de cuidado e vigilância que se espera seja fornecido.
    Assim, o elemento segurança é um dever implícito a toda e qualquer relação de consumo e o seu descumprimento pode acarretar a responsabilidade do fornecedor porquanto não se pode tolerar que um produto ou serviço viciado ou defeituoso seja colocado em circulação e, como conseqüência, cause danos ao consumidor.

    4. Da vulnerabilidade e da hipossufuciência

    Esclareça por primeiro que o Código de Defesa do Consumidor trata de maneira diferente os dois institutos. Com relação à vulnerabilidade, considera todo consumidor como parte vulnerável nas relações de consumo (art. 4°, I), porém dispensa-lhe tratamento diferenciado no que diz respeito à hipossuficiência já que, na relação processual, esta dependerá do reconhecimento por parte do juiz da causa, segundo suas experiências com base naquilo que comumente acontece (art. 6°, VIII).
    Segundo a dicção da Lei consumerista, todo o consumidor é vulnerável, porém nem sempre será considerado hipossuficiente. Para melhor entender a questão vamos individualizá-las.

    4.1 Vulnerabilidade

    A vulnerabilidade do consumidor decorre, principalmente, de três fatores básicos: de ordem técnica, de ordem econômica e de natureza jurídica.
    Do ponto de vista técnico, é o fornecedor quem detém o controle e os conhecimentos da produção dos bens, pois é ele quem “escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido”. Significa dizer que o consumidor, para satisfazer suas necessidade de consumo, comparece ao mercado e se submete às condições que lhe são impostas pelos fornecedores de produtos e serviços.
    O segundo aspecto diz respeito à capacidade econômica das partes envolvidas, onde, via de regra, o fornecedor detém capacidade econômica maior do que o consumidor individualmente considerado. Claro que haverá situação em que o consumidor terá capacidade econômica muito maior do que o fornecedor, porém isto deverá ser encarado como exceção, e não como regra geral.
    Do ponto de vista da vulnerabilidade jurídica, os contratos de adesões e suas cláusulas abusivas constituem-se no melhor exemplo. Como esses contratos são elaborados previamente pelos fornecedores, de forma unilateral, temos que as inserções de cláusulas contratuais serão realizadas de modo a favorecer a posição econômica e jurídica do fornecedor, em detrimento do consumidor aderente.
    A vulnerabilidade, conforme insculpida no Código de Defesa do Consumidor, independe de qualquer critério de razoabilidade para ser aferida, em face de uma situação concreta, já que o legislador presumiu iure et de iure que nas relações de consumo o consumidor, enquanto destinatário final de produtos, é a parte mais fraca e, portanto merece ser amparado de forma privilegiada, de tal sorte que, tratando desigualmente os desiguais, na proporção de suas desigualdades, se possa obter a igualdade jurídica desejada.

    4.2 Hipossuficiência

    Diferentemente da vulnerabilidade, que é presumida, a hipossuficiência do consumidor terá seu reconhecimento condicionado à análise do julgador que, valendo-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito, poderá reconhecê-la ou afastá-la frente ao caso concreto, segundo as regras ordinárias de experiências (art. 6°, VIII).
    A questão da hipossuficiência está intimamente ligada à possibilidade de o juiz determinar, ou não, a inversão do ônus da prova, como forma de facilitação da defesa do consumidor em juízo. Em muitas situações as informações e os documentos hábeis a instruir uma causa se encontram em poder do fornecedor. Nestas circunstâncias, é de todo impossível ao consumidor fazer a prova de seus direitos instruindo adequadamente sua postulação em juízo, razão porquê o instituto da inversão do ônus da prova permite que ele litigue em melhores condições frente ao fornecedor de produtos ou serviços.
    Atente-se para o fato de que a hipossuficiência de que trata o Código não é de ordem econômica ou financeira. Ela é lastreada na concepção de que ao consumidor falta conhecimento técnico e informações sobre os produtos ou serviços disponibilizados no mercado de consumo. É essa pobreza de conhecimentos técnicos ou científicos sobre o produto ou serviço que transforma o consumidor no elo mais frágil da relação de consumo, razão porque precisa de maior proteção. Essa fragilidade repita-se, não é econômica ou financeira, porque para o consumidor carente de recurso, existe a possibilidade de assistência judiciária gratuita, objeto do próximo item.

    5. Bibliografia
    ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1993.
    BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos et all. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
    CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.
    COELHO, Fábio Ulhoa. O Empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994.
    GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito, 23ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
    MARQUES, Claudia Lima – Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
    MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2010. RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.
    SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 5a. ed. São Paulo: LTr, 2002.

    SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira – Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002.
    SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
    SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional.São Paulo: Saraiva, 2006.

     Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.
     Conforme anotamos em nossa obra Da defesa do consumidor em juízo, p.39-44.
     RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentário ao Código de Defesa do Consumidor, p. 8.
     GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito, p. 108.
     SIQUEIRA JR, Paulo Hamilton. Direito processual constitucional, pp. 12-15.
     RIZZATTO NUNES, op. cit., pp. 10-11.
     Conforme nossa obra Da defesa do consumidor em juízo, p. 39-46
    CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor, p. 27.
     MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 671.
     SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor…, p. 59.
     AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. STJ – Voto visto no Resp n° 45666/5-SP.
     SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira, op. cit. p. 277.
     MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 595
     SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 101.
     COELHO, Fabio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor, p. 137
     BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. Código comentados pelos autores do anteprojeto, p. 179-180.
     MARQUES, Claudia Lima, op. Cit. p. 598-599.
     RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 365.
     MARQUES, Claudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 640.
     BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 177.
     MARQUES, Claudia Lima, op. cit. P. 646.
     MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 53.
     DENARI, Zelmo. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 96.
     SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 73-74.
     RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit.,p. 106.
     Cf. João Batista de Almeida. A proteção jurídica do consumidor, p. 15.
     Ver Claudia Lima Marques. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 146-150.
     Ver Roberto Senise Lisboa, Responsabilidade civil nas relações de consumo, cit., p. 84-85.
     Eduardo Gabriel Saad, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 195

Autor: Nehemias Domingos de Melo

Sumário: 1. Dever de segurança na seara consumerista. 2. Dever de informação como direito básico do consumidor. 3. Recall: o que é e como funciona. 4. Conclusões. 5. Bibliografia.

1. O dever de segurança na seara consumerista

Anote-se por primeiro, que a responsabilidade que o Código de Defesa do Consumidor impõe aos fornecedores, tanto de produtos quanto de serviços, além dos deveres de qualidade e de informação, é um dever de segurança. Isto quer dizer que aquele que coloca um produto ou um serviço no mercado tem a obrigação legal de ofertá-lo sem risco ao consumidor no que diz respeito à sua saúde, à sua integridade física e ao seu patrimônio (Lei n° 8.078/90, art. 8° a 10, 12 § 1° e 14 § 1°).
Este dever de segurança não é absoluto porque o Código de Defesa do Consumidor não proíbe a colocação no mercado consumidor de produtos ou serviços potencialmente perigosos, em verdade tal dever ancora-se na idéia de defeito. De fato, a própria lei consumerista quando define o que seja produto ou serviço defeituoso explicita que são aqueles que não oferecem a segurança que legitimamente deles se espera, consideradas as circunstâncias de fornecimento tais como a apresentação, o uso e os riscos esperados e a época da colocação em circulação ou fornecido (Lei n° 8.078/90, art. 12, § 1° e 14, § 1°).
Tanto é verdade que diversos produtos e serviços, naturalmente perigosos, estão colocados no mercado e são imprescindíveis aos seres humanos. Dentre exemplos clássicos podemos destacar “a quase totalidade dos medicamentos, (que) em razão de sua natureza, ostenta índice normal de nocividade que, com vista à responsabilidade do fornecedor, será tolerado quando vier acompanhado de bulas explicativas”. Neste caso, a nocividade será ilidida desde que o produto seja acompanhado de explicações quanto à sua destinação e uso (bula) de tal sorte a afirmar que o dever de informação, que deverá ser ostensiva, é complementar ao dever de segurança. Significa dizer que se o consumidor for adequadamente informado sobre a nocividade ou periculosidade do produto e, se ainda assim promover o uso inadequado ou impróprio do mesmo, não poderá responsabilizar o fornecedor, pois estaremos diante de culpa exclusiva da vítima ou, eventualmente, de terceiro.
Outro exemplo ilustrativo é o do inseticida agrícola que é eficaz para o combate de pragas, mas pode ser extremamente nocivo à saúde de quem estiver aplicando-o. Assim, se o produto traz informações quanto à sua nocividade e, além disso, informa que para ser aplicado o usuário deve utilizar-se de máscara, luvas e macacão como forma de proteção, o fornecedor terá se desincumbido do ônus da informação e, na eventualidade de acidente, estará isento do dever de indenizar.
Desta forma, temos que o dever de segurança está implícito em toda e qualquer relação de consumo tanto é assim que, conforme afirma Roberto Senise Lisboa, “a responsabilidade pelo fato do produto e serviço é embasada no dever de segurança que o fornecedor tem de exercer a sua atividade sem acarretar danos à vida, saúde ou outros direitos extrapatrimoniais do consumidor, sob pena de responder pela reparação do prejuízo oriundo de um acidente de consumo”.
É por essa razão que a jurisprudência pátria vem reconhecendo que acidentes de consumo ocorridos em shoppings centers e supermercados, para citar um exemplo, tanto no que diz respeito a segurança pessoal do consumidor, quanto a seus pertences, acarreta um dever indenizatório em face do dever de segurança ínsito na atividade negocial ali desenvolvida. Assim, o furto de veículo no estacionamento, seqüestro relâmpago do usuário, queda em razão de piso escorregadio, dentro outras, gera responsabilidade para o detentor da atividade em razão do dever de cuidado e vigilância que se espera seja fornecido.
Se dúvida restar, vejamos recente decisão do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema: “a empresa que fornece estacionamento aos veículos de seus clientes responde objetivamente pelos furtos, roubos e latrocínios ocorridos no seu interior, uma vez que, em troca dos benefícios financeiros indiretos decorrentes desse acréscimo de conforto aos consumidores, o estabelecimento assume o dever – implícito em qualquer relação contratual – de lealdade e segurança, como aplicação concreta do princípio da confiança.
Assim, o elemento segurança é um dever implícito a toda e qualquer relação de consumo e o seu descumprimento pode acarretar a responsabilidade do fornecedor porquanto não se pode tolerar que um produto ou serviço viciado ou defeituoso seja colocado em circulação e, como conseqüência, cause danos ao consumidor.

2. Dever de informação como direito básico do consumidor

É direito básico do consumidor receber informações adequadas e claras, sobre os produtos e serviços disponibilizados no mercado de consumo, inclusive com especificação de quantidade, características, composição, qualidade e preço, além dos eventuais riscos que produtos ou serviços apresentem, para que ele possa exercer de forma livre e consciente a sua opção quanto a escolha e aquisição (Lei n° 8.078/90, art. 6°, III).
Esse dever de informação pode se materializar de várias formas. As informações podem ser fornecidas nas embalagens e rótulos dos produtos, na propaganda veiculada por qualquer forma, na publicidade, nos impressos ou mesmo nos orçamentos.
Ademais, este dever de informação está explícito no Código de Defesa do Consumidor que, em outras passagens, volta a exigir respeito ao dever de bem informar como, por exemplo, quando trata da obrigação de informação quanto aos produtos perigosos ou nocivos à saúde ou à segurança (art. 9°); quando trata da informação publicitária (art. 30 e 31); quando estabelece que o fornecedor de serviços é obrigado a entregar, previamente, orçamento detalhado ao consumidor (art. 40); quando trata dos bancos de dados e cadastros de consumidores, ao prever que é direito do consumidor, ser informado de que se está armazenado dados a seu respeito (art. 43, § 2°); quando trata das informações constantes dos contratos de consumo que não obrigarão os consumidores se não lhes for dada oportunidade de pleno conhecimento de seu conteúdo (art. 46); quando trata das informações quanto ao preço, juros e prestações, que devem preceder a outorga de crédito (art. 52); ou ainda, quando trata de defeitos de produtos e serviços dizendo que os fornecedores podem ser responsabilizados, inclusive, por informações insuficientes ou inadequadas quanto aos riscos de utilização (caput dos arts. 12 e 14, parte final).
Verificamos assim, que além do direito à informação quanto a fruidez, segurança, qualidade e preço, genericamente tratada no art. 6°, inciso III, o Código prevê outras hipóteses de obrigatoriedade de informação, inclusive com o vinculação da mesma ao contrato a ser firmado, de tal sorte que se pode afirmar que a informação, enquanto direito do consumidor, não se restringe à comunicação escrita, podendo ser verbal e, até mesmo, gestual.
Como já dissemos, a informação tal qual prevista na lei consumerista pode ser veiculada por qualquer meio de comunicação como também pode ser representada pela fala do preposto da empresa no atendimento telefônico, no preço fornecido verbalmente pelo feirante ao comprador, no atendimento prestado pela recepcionista do hotel esclarecendo quais os equipamentos à disposição do hospede, nas informações verbais prestada pelo garçom do restaurante quando complementam as informações constantes do cardápio, nas informações verbais fornecidas pelo gerente do banco quanto aos benefícios de produtos ou financiamentos, dentre outras.
Discorrendo sobre a amplitude do conceito de informação, Claudia Lima Marques assevera que “da mesma maneira (que) os escritos particulares, por exemplo, pequenas promessas feitas por prepostos ávidos em vender (art. 34 do CDC), passam agora a integrar o contrato, como obrigações de fazer. A norma pode ser ampliada para atingir (sic) todos os anexos e documentos conexos contratuais. A medida amplia consideravelmente o conteúdo do contrato a ser firmado entre consumidor e fornecedor”.
A regra geral adotada pela lei consumerista, no que diz respeito às informações vinculadas ao produto ou serviço, resume-se ao “prometeu, cumpriu”. A sanção para o não cumprimento da obrigação decorrente da informação vem expresso em diversas passagens. Por exemplo: com relação a informação/publicidade que obriga o fornecedor (art. 30), a sanção vem expressa no art. 35 que fornece ao consumidor instrumentos para exigir o cumprimento do prometido. Outras independem de expressa previsão como no caso dos contratos com informações insuficientes ou redigidos de forma dúbia (art. 46), a sanção decorre do próprio artigo porquanto em sua primeira parte é enfático ao preceituar que “os contratos que regulam as relações de consumo “não obrigarão” os consumidores, se não lhes for dada oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo. Logo, se as informações não forem clara, completas e de forma inteligível, o consumidor não estará obrigado ao seu cumprimento, podendo pleitear, judicialmente, a declaração de nulidade de cláusulas ou do contrato como um todo.
Assim, a transparência enquanto maior clareza e veracidade a respeito de qualquer produto ou serviço, somente será alcançada através de uma maior troca de informações entre o fornecedor e o consumidor na fase pré-contratual, de tal sorte a se afirmar que o dever de informar é um reflexo do princípio da transparência.

3. Recall: o que é e como funciona

‘Recall’ é a campanha feita por uma empresa nos meios de comunicação com a finalidade de informar o consumidor sobre a periculosidade de um produto ou serviço já introduzido no mercado. A campanha normalmente alerta sobre o defeito e os riscos do produto, além de trazer informações dos locais onde deve ser feita a reparação ou a troca.
De acordo com o Código de Defesa do Consumidor, toda vez que um fornecedor souber que um produto ou serviço já colocado no mercado pode afetar a saúde ou segurança do consumidor, ele deve comunicar o fato à população, por meio de anúncios publicitários, bem como comunicar também às autoridades competentes (Lei n° 8.078/90, art. 10, §§ 1° e 2°).
Disciplinando a matéria, a Portaria nº 618 do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, de julho de 2019, diz que a comunicação feita à Secretaria Nacional do Consumidor deverá indicar: a quantidade de consumidores atingidos em número e percentual, em termos globais e por unidade federava: justificava e medidas a serem adotadas em relação ao percentual de produtos ou serviços não recolhidos nem reparados, e identificação da forma pela qual os consumidores tomaram conhecimento do aviso de risco, dentre outras medidas.
A comunicação ao consumidor deve ser feita por meio de campanha publicitária em todos os locais onde haja consumidores deste produto ou serviço. Os anúncios devem trazer informações sobre o defeito que o produto ou serviço apresenta, bem como sobre os riscos decorrentes e as medidas preventivas e corretivas que o consumidor deve tomar, incluindo locais para reparo ou troca do produto. Além dos anúncios publicitários, a empresa pode comunicar o consumidor por meio de correspondência, anúncios via Internet e avisos por telefone, mas sem abrir mão da campanha publicitária.

4. Conclusões

A função do recall é informar aos consumidores adquirentes daquele determinado produto ou serviço sobre os eventuais riscos, como forma de permitir que o vício do produto ou do serviço seja sanado.
Importante deixar consignado que o fato do fornecedor chamar para o recall não o isenta de responsabilidade pelos danos que eventualmente o consumidor venha a sofrer, tendo em vista que a responsabilidade é objetiva, aplicando-se as regras instituídas nos artigos 12 a 14 da Lei n° 8.078/90.
Tudo em perfeita harmonia com o que estabelece o art. 10 do CDC ao explicitar que o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo, produto ou serviço que sabe (ou deveria saber) possa apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou à segurança dos consumidores.

5. Bibliografia
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
DENARI, Zelmo et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – Comentado pelos autores do anteprojeto, 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MELO, Nehemias Domingos de. A defesa do consumidor em juízo. São Paulo: Atlas, 2010.
RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.
SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 5a. ed. São Paulo: LTr, 2002.
SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

 Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.
 DENARI, Zelmo. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 96.
 SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 218
 SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 73-74.
 STJ – AgRg no AREsp 850198 RN 2016/0018763-0 (STJ), Rel. Ministro Marco Buzzi, T4 – Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 15/09/2017.
 SENISE LISBOA, Roberto. Op.cit. p. 74-75.
 MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo, p. 35-37.
 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 365.
 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 640.
 BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos. Código comentado pelos autores do anteprojeto, p. 177.
 MARQUES, Claudia Lima. Op. cit. p. 646.
 Essa matéria foi regulada inicialmente pela Portaria n° 789, de 24 de agosto de 2001, que foi depois revogada pela Portaria no 789, de 24 de agosto de 2001.

Autor: Nehemias Domingos De Melo

Sumario: 1. Introdução. 2. Histórico do contrato de franquia. 3. Características do contrato de franquia. 4. Espécies de franquia. 5. Responsabilidade objetiva no Código de Defesa do Consumidor. 6. Da responsabilidade pelo acidente de consumo. 7. Dos responsáveis pelo dever indenizatório (7.1 Fornecedor real; 7.2 Fornecedor aparente; 7.3 Fornecedor presumido; 7.4 O comerciante). 8. A solidariedade entre todos os participantes da cadeia de produção e distribuição. 9. Conclusão. 10. Bibliografia.

1. Introdução

“Franchise”, em inglês, provém do verbo francês “franchir” que significa libertar ou liberar, dar imunidade a alguém originalmente proibido de praticar certos atos. Daí o termo “franchisage”, correspondente ao privilégio que se concedia na Idade Média a cidades e súditos. Tem a compreensão de um privilégio concedido a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. Juridicamente significa um direito concedito a alguém.

De maneira bem objetiva Carlos Roberto Gonçalves define a franquia como sendo um contrato pelo qual um comerciante detentor de uma marca ou produto (franqueador) concede, mediante remuneração, o seu uso para outra pessoa (franqueado) e lhes presta serviços de organização empresarial.
Marzorati define a “La franquicia comercial es un sistema de distribución utilizado por empresas legalmente independientes y con una organización vertical cooperativa, basada en una relación contractual permanente”.
Thompson ha definido “El contrato de franquicia es aquel en el cual una organización, el franquiciante, que ha desarrollado un método o una fórmula para la fabricación y/o venta de un producto o servicio, extiende a otras firmas, los franquiciados, el derecho de proseguir con tal negocio sujeto a ciertos controles y restricciones. En casi todos los casos, el franquiciado opera bajo el nombre del franquiciante como marca o nombre comercial”.
É um contrato que oferece vantagens par ambas as partes tendo em vista que é feita uma associação entre o franqueado que dispõe de recurso, mas não tem os conhecimento técnicos necessários para o sucesso do empreendimento, que pode se estabelecer desde logo, negociando produtos ou serviços já conhecidos e aceitos pelo mercado consumidor, enquanto o franqueador pode expandir sua rede de oferta de seus produtos ou serviços, sem as despesas e riscos inerente à implantação de filiais.

2. Histórico do contrato de franquia

La Franquicia comercial, como vinculo entre dos particulares, tuvo su inicio en el siglo XIX en los Estados Unidos de Norteamérica, en el año 1850 aproximadamente, cuando la compañía SINGER & CO, crea una novedosa forma de distribución y venta, que continua hasta nuestros días, para sus maquinas de coser, producto base de dicha empresa.
Naquela oportunidade e pretendendo ampliar sua participação no mercado varejista, a Singer outorgou franquias a pequenos comerciantes que passaram a comercializar seus produtos em lojas arcando com as despesas e os riscos do negócio. A iniciativa teve tanto sucesso que já no final do século XIX a General Motors e a Coca-Cola seguiram os mesmos procedimentos.
O sucesso desse tipo de contrato foi imediato e depois se expandiu para outras atividades, atingindo seu ápice com a rede MacDonald’s que em meados do século XX, precisamente no ano de 1955, como meio para expandir seu sistema de serviços de comidas rápidas. Importatne lembrar que Ray Kroc McDonald abre o primeiro restaurante da rede com o nome da família McDonald, em Dês Plaines, Illinois. Só para se ter uma idéia do sucesso dessa empreitada basta dizer que a McDonald’s Corporation é a maior cadeia mundial de restaurantes de fast food de hambúrguer, servindo cerca de 68 milhões de clientes por dia, em 119 países, através de 37 mil pontos de venda.
No Brasil o instituto da franquia está em franco desenvolvimento e encontra-se regulado pela Lei nº 13.966/19, aplicando-se também as regras do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

3. Características do contrato de franquia

Nesse tipo de contrato atuam duas figuras jurídicas distintas: o franqueador, que detém a marca e conhece o sistema de comercialização do produto ou serviço; e, o franqueado que se filia ao empreendimento mediante uma remuneração inicial, mais uma percentagem periódica sobre os lucros obtidos e, arcando com os custos e despesas da instalação, ficando autorizado a comercializar os produtos ou serviços e utilizar a marca.
O franqueador estabelece o modo pelo qual o franqueado deverá instalar e fornecer o seu produto ou serviço e lhe presta orientação e asistência técnica de maneira contínua, pelo prazo e duração do contrato.
La franquicia es un contrato de carácter distributivo, un típico y moderno contrato de la distribución comercial. Tiene fuertes rasgos “cooperativos o colaborativos” y en la mayoría de los casos constituye un “contrato complejo”, que abarca una pluralidad de contratos muchas veces celebrados por separado para la consecución de un resultado negocial único, tendo características de outros contratos, cabendo destacar os seguintes aspectos:
Contrato de engineering, pelo qual o franqueador planeja e orienta a montagem do estabelecimento franqueado;
Contrato de management, relativo ao treinamento dos funcionários e à estruturação da administração do negócio;
Contrato de marketing, pertinente às técnicas de colocação dos produtos ou serviços juntos aos consumidores.
Assim podemos afirmar que o elemento marcante nesse tipo de contrato é a autorização de nome e marca que uma empresa cede a outra com a prestação de serviços, mediante a remuneração convencionada.
Como ensina Caio Mário, são dois os elementos do franchising. O primeiro é a licença de utilização de marca, de nome, e até de insígnia do franqueador. O segundo, a prestação de serviços de organização e métodos de venda, padronização de materiais, e até de uniforme de pessoa externo.
Sua natureza jurídica, portanto pode ser definida como um contrato bilateral, pois contém obrigações recíporcas, sendo também oneroso. É consensual, pois depende exclusivamente da vontade das partes. É comutativo, tendo em vista apresentar prestações conhecidas previamente por ambas as partes, embora possa conter alguma cláusula aleatória. É intuitu personae porque ambas as partes tem em mira realizar negócio com o outro contratante específico. É de adesão porque o franqueado, embora possa discutir algumas cláusulas, no essencial tem que se subordinar as exigências do franqueador.

4. Espécies de franquia

Segundo Maria Helena Diniz, podemos identificar três modalidades distintas de franquia, quais sejam:
Franquia industrial ou “lifreding”, muito utilizada na indústria automobilística e alimentícia (General Motors, Coca-Cola, etc), por ser um contrato em que o franqueador se obriga a auxiliar na construção de uma unidade industrial para o franqueado, cedendo o uso da marca, transmitindo sua tecnologia, exigindo segredo relativamento aos processos de frabricação e fornecendo assistência técnica. Desse modo, o franqueado fabrica e vende os produtos frabricados por ele mesmo, em sua empresa, com o auxílio do franqueador;
Franquia de comércio ou de distribuição, que vem a ser o contrato que visa o desenvolvimento da rede de lojas de aspectos idêntidos, sob um mesmo símbolo, aplicado na comercialização ou distribuição de artigos similares de grande consumo (lojas Bennetton, Boticário, etc). O franqueado, neste caso, vende produtos do franqueador, mantendo a sua marca, enquanto o franqueador procura sempre aperfeiçoar o método de comercialização; e,
Franquia de serviços, que poderá ser considerada a franquia propriamente dita, pela qual o franqueado reproduz e vende os serviços inventados pelo franqueador, e a do tipo hoteleiro, que abrange escolas, hotéis, restaurantes, lanchonetes, tendo por escopo fornecer serviços a certo segmento de clientes (Hotéis Hilton, Mac Donald’s, Pizza Hut, etc).

5. Responsabilidade civil objetiva no Código de Deefesa do Consumidor

O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) adotou a responsabilidade objetiva como fundamento para a reparação de danos decorrentes dos acidentes de consumo (arts. 12 a 14), embasado na teoria do risco da atividade profissional como forma de socializar os riscos e de garantir a efetiva reparação dos danos causados ao consumidor. Por essa teoria, “quem introduz um risco novo na vida social deve arcar com eventuais conseqüências danosas a outrem, em toda a sua integralidade”.
Desta forma, podemos afirmar que a lei consumerista deu uma guinada de 180 graus no ordenamento jurídico vigente à época de sua promulgação tendo em vista que até o seu “advento não havia legislação eficiente para enfrentar a problemática dos acidentes de consumo e proteger os consumidores”, tendo em vista que os “riscos de consumo corriam por conta do consumidor, porquanto o fornecedor só respondia no caso de dolo ou culpa, cuja prova era praticamente impossível”.
Pela teoria do risco da atividade ou risco proveito, ou ainda, risco do empreendimento, quem desenvolve uma atividade com fins de lucros, tem que assumir as responsabilidades decorrentes da própria atividade. A lógica se encontra no fato de que se a atividade resulta em benefícios para seu empreendedor, nada mais justo que o mesmo assuma os riscos pelos prejuízos que, eventualmente, esta atividade possa vir a causar a outrem.
A adoção da teoria do risco da atividade ou risco proveito funda-se, portanto, na premissa de que as perdas decorrentes do dever de indenizar serão compensadas com os lucros obtidos na atividade negocial do agente causador do dano. É a chamada justiça distributiva que pressupõe repartir os riscos da atividade de consumo, entre todos os participantes da sociedade de consumo, seja através da política de preços ou dos seguros sociais.
É importante destacar que o risco de que nos fala o Código de Defesa do Consumidor (art. 12 e 14, caput, in fine), está intimamente ligado ao dever jurídico de respeitar a integridade física, psíquica e patrimonial do consumidor. Violado este dever jurídico, nascerá para o lesado o direito à indenização e, para o detentor da atividade, o dever de indenizar em razão de sua atividade. Nestas circunstâncias, não se discute a existência de culpa do agente, bastando à vítima demonstrar a ocorrência do dano e o nexo de causalidade, para fazer nascer o dever indenizatório, porquanto, trata-se de responsabilidade objetiva.
Devemos também abstrair qualquer idéia de anormalidade do ato danoso, uma vez que a obrigação ressarcitória irá decorrer não da ilegalidade da atividade, mas dos danos que ela, mesmo regularmente desenvolvida, venha a causar a outrem. O que a lei procura assegurar é que haja uma integral indenização, de tal sorte que aquele que, tendo sofrido um dano por defeito na realização de determinada atividade, possa ter assegurado o direito à indenização.
Assim, a atividade poderá ser potencialmente perigosa ou não, mesmo lícita, mas causadora de dano. Nestas circunstâncias, o importante é considerar que, se a atividade normalmente desenvolvida foi a causa do dano, obrigará o seu explorador a indenizar a vítima, independentemente da existência de culpa, somente se isentando de tal dever, se provar a ocorrência das eximentes expressamente prevista no Código consumerista.
A responsabilidade objetiva do fornecedor pelo fato do produto ou do serviço é um imperativo do Código de Defesa do Consumidor (caput do art. 12 e 14). Porém essa responsabilidade é mitigada, quer dizer, não é integral, em razão da possibilidade do fornecedor isentar-se do dever de indenizar se provar a ocorrência de uma das excludentes expressamente previstas no estatuto consumerista, quais sejam: a não colocação do produto ou serviço no mercado; ou, que mesmo tendo colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; e, por fim, a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro (art. 12, § 3° e art. 14, § 3°).
Cabe ainda observar que a relação entre fraqueado e franqueador não se submete à relação de consumo tendo em vista que, neste caso, não há um fornecedor de um lado e um consumidor do outro. A Lei n° 13.966 de 26/12/2019 procurou deixar claro que não caracteriza relação de consumo ou vínculo empregatício a relação entre o franqueador e o franqueado ou com seus empregados, ainda que durante o período de treinamento. Importante que a lei tenha feito essa ressalva porque isso dá mais segurança jurídica aos envolvidos nesse tipo de contrato.

6. Da responsabilidade pelo acidente de consumo

O “fato de produto” deve ser entendido como “a repercussão externa do defeito do produto, ocasionando dano na esfera de interesses juridicamente protegido do consumidor, ou seja, é a causa objetiva do dano causado ao consumidor em virtude de defeito de produto, também chamado de acidente de consumo”. Quer dizer, para caracterizar o fato de produto (acidente de consumo) é necessário que o produto defeituoso ocasione dano físico ou psíquico ao consumidor ou utente, pois se esse defeito apenas frustrar as expectativas de uso, por impróprios ou inadequados, estaremos diante do vício de produto cujos prejuízos, mais das vezes, serão exclusivamente de ordem material.
Além disso, o Código de Defesa do Consumidor considera defeituoso o produto que não oferecer a segurança legitimamente dele esperada, considerando-se a sua apresentação, o uso e riscos razoavelmente dele esperado e a época em que foi colocado no mercado (art. 12, § 1°, I a III).
Assim, o produto poderá ser considerado defeituoso se houver falhas na sua apresentação, incluindo-se rótulo, bula e publicidade, que deverão ser claras e ostensivas, em linguagem acessível, devendo informar para quais usos se recomenda o produto, quais os riscos que podem advir do mesmo, os cuidados que devem ser tomados no manuseio e uso, além das instruções quanto ao uso e fruição do produto.
Alguns produtos são naturalmente perigosos e, às vezes, esse perigo é inerente ao mesmo sob pena de frustrar a legítima expectativa e satisfação do consumidor. Uma faca de cozinha, por exemplo, é naturalmente perigosa e frustrará a expectativa de uso se ela não se prestar a cortar os alimentos. Nestas circunstâncias, o fato do consumidor cortar acidentalmente a mão no manuseio desta faca, tal fato não ensejará para o fornecedor nenhum dever indenizatório, pois o risco de corte é próprio do produto, sendo aquilo que a doutrina chama de “risco inerente”. Diferentemente se o consumidor ao utilizar a faca venha a se ferir em face de um defeito no cabo da mesma, que se desprendeu ao ser manuseado, pois aí estaremos diante de um risco não previsível sendo aquilo que se pode chamar de “risco adquirido”.
Advirta-se ainda, que o produto não pode ser considerado defeituoso se eventualmente outro modelo mais novo, bem desenvolvido e de melhor qualidade, venha a ser introduzido no mercado (art. 12, § 2°). Justifica-se tal previsão, pois se assim não fosse, o Código seria um grande obstáculo ao desenvolvimento e ao progresso, tendo em vista que a indústria, comércio e a prestação de serviços restariam estagnados, pois ninguém iria correr riscos de desenvolver novos produtos e serviços, sabendo que poderia ser responsabilizado pelos modelos antigos anteriormente comercializados.
Rememore-se por oportuno que, a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto (acidentes de consumo) é objetiva, logo independente de culpa, a teor do que, expressamente, dispõe o Código de Defesa do Consumidor tendo em vista que o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos (art. 12, caput).
Ademais, o consumidor tem direito à reparação integral do dano (art. 6°, VI), sendo certo que nas indenizações por fato de produto o consumidor lesado poderá ser indenizado por danos morais em razão dos dissabores e sofrimento eventualmente suportados em face do acidente de consumo, como também poderá se ver ressarcido dos danos materiais decorrentes do mesmo fato (danos emergentes e lucros cessantes) e, eventualmente, dano estético se do acidente restou cicatrizes, deformidade ou aleijão.

7. Dos responsáveis pelo dever indenizatório

Conforme já mencionado, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor elenca como responsáveis pelo dever indenizatório, nos casos de acidentes de consumo, o fabricante, o produtor, o construtor (nacional ou estrangeiro), e o importador que respondem, independentemente da existência de culpa (responsabilidade objetiva), pela reparação dos danos, eventualmente causados aos consumidores (art. 12, caput).
Além destes, que podemos chamar de responsáveis diretos, o Código consumerista também prevê a responsabilidade do comerciante, que podemos chamar de responsabilidade supletiva ou suplementar na exata medida em que também será responsabilizado objetivamente quando: o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados; ou, o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador; ou ainda, quando não conservar adequadamente os produtos considerados perecíveis (art. 13, I, II e III).
Neste cenário, podemos identificar e classificar os responsáveis pelo dever de indenizar, em face de acidentes de consumo, da seguinte forma: fornecedor real, fornecedor aparente, fornecedor presumido e fornecedor comerciante, que serão objetos dos tópicos seguintes.

7.1 – Fornecedor real:
O fornecedor real, pela sistemática adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, é “o fabricante, o produtor e o construtor, nacional ou estrangeiro” (art. 12, caput).
São responsáveis reais então, todas as pessoas, físicas ou jurídicas, que de qualquer forma participem direta ou indiretamente, do processo de criação de um produto com a sua subseqüente inclusão no mercado de consumo. Em síntese: São os verdadeiros responsáveis pela defeituosidade do produto.

7.2 – Fornecedor aparente:
Fornecedor aparente, ou “quase-fornecedor”, é aquele que apõe sua marca ou sinal distintivo no produto fabricado por outrem, assumindo assim, pela teoria da aparência, a responsabilidade substitutiva pelo fato de produto.
Veja-se que neste caso, a responsabilidade do fabricante aparente ocorrerá mesmo naqueles casos em que as circunstâncias permitam presumir que o produto foi produzido por outra pessoa e tal se justifica porque aquele que, na apresentação do produto assume a qualidade de produtor, seja por omitir o verdadeiro fabricante, seja pela aposição de seu nome ou marca, não poderá vir a ser exonerado mesmo nos casos em que indique com clareza quem efetivamente seja o responsável pela fabricação do produto.
O objetivo de tal dispositivo é facilitar a defesa dos direitos dos consumidores eventualmente lesados por produtos defeituosos, tendo em vista que não se exige da vítima que identifique quem é o fornecedor real, conformando-se a ordem jurídica com a indicação do fornecedor aparente. Caso típico são as franquias (franchising) que, como fruto da modernidade comercial e parcerias, implica na concessão de exploração de determinada atividade na qual o titular da marca (franqueador) autoriza e disciplina o seu uso por outro empresário (franqueado), mediante remuneração não só pelo uso da marca, como também pela exclusividade na aquisição e comercialização dos produtos daquela marca.

7.3 – Fornecedor presumido:
Presumido é o importador dos produtos industrializados ou mesmo in natura que respondem, em nome próprio, pelos danos causados aos consumidores por eventuais defeitos de fabricação ou produção dos artigos por eles importados. Como diz Silvio Luís Ferreira da Rocha, “é exemplo típico de ‘responsabilidade indireta’ porque ele não atua de nenhum modo no processo de fabricação dos bens importados”.
Esta equiparação do importador a fabricante/produtor se justifica em razão da distância em que se encontra o fornecedor estrangeiro, o que dificultaria, senão inviabilizaria a defesa do consumidor vítima do acidente de consumo, em razão dos custos e dificuldade de ordem prática que encontraria para fazer valer seus direitos.

7.4 – O comerciante:
No que diz respeito à responsabilização pelo fato de produto, o comerciante é também igualmente responsabilizado objetivamente, porém o legislador consumerista ressalvou, expressamente, que essa responsabilidade somente se operará quando for impossível ou difícil a identificação do fabricante, construtor, produtor ou importador do produto ou, quando se tratar de produtos perecíveis e o comerciante não os conservar de forma adequada (CDC, art. 13).
A opção legislativa foi no sentido de considerar o comerciante também responsável objetivamente, porém, de forma condicionada (muitos falam que é subsidiária), quer dizer que ele somente será chamado a responder pelos danos aos consumidores quando se fizer presente alguma das alternativas expressamente prevista na lei consumerista (Lei n° 8.078/90, art. 13), já que, via de regra, quem deverá responder pelo acidente de consumo será o fabricante, o produtor, o construtor (nacional ou estrangeiro), e o importador.
Importante destacar que a responsabilidade do comerciante de produto anônimo (art. 13, I e II) tem uma natureza “coercitiva e sancionatória”. Coercitiva, porque meio indireto de constranger o comerciante a comunicar à vítima a identidade do fabricante, produtor ou importador do produto. Sancionatória porque, se não o fizer, sofrerá diretamente os efeitos da responsabilização pelo dano como uma sanção pelo não esclarecimento solicitado pela vítima.
Já no tocante à responsabilidade decorrente da guarda e conservação inadequada de produtos perecíveis (art. 13, III), a previsão se assenta em duas premissas: ou o comerciante deverá ser instado a responder por ato próprio, quando tenha sido negligente, não conservando adequadamente o produto; ou, será responsabilizado conjuntamente já que não se pode exigir do consumidor que investigue se o produto já saiu de fábrica deteriorado. Se foi deteriorado no transporte, ou se veio a se deteriorar nas instalações do comerciante.
Verifica-se que nas hipóteses elencadas a responsabilidade do comerciante emerge como própria daí porque não se pode falar em subsidariedade, pois se assim fosse, seria necessário primeiro acionar algum dos obrigados principais (art. 12), para somente na sua impossibilidade, dirigir-se a demanda contra o comerciante, não é esse o espírito da lei.

8. A solidariedade entre todos os participantes da cadeia de produção e distribuição

A solidariedade é um dos aspectos mais importantes contemplados pelo Código de Defesa do Consumidor, significando a bem da verdade, o alargamento das possibilidades de indenização de danos aos consumidores, tendo em vista que referida a lei consignou expressamente que havendo mais de um autor da ofensa todos responderão solidariamente pela reparação do dano (art. 7°, parágrafo único).
Em termos de responsabilidade civil este aspecto e extremamente importante, pois amplia substancialmente as possibilidades de efetiva prevenção e reparação de danos, tendo em vista que a lei faculta ao consumidor lesado a opção de demandar contra qualquer um dos participantes da cadeia de produção/distribuição do produto ou serviço causador do dano.
A solidariedade passiva de forma ampla incluindo todos os participantes no evento danoso vem a ser reafirmada no art. 25 em seu parágrafo primeiro, enquanto que no parágrafo segundo o legislador incluiu como coobrigados solidários os fornecedores de peças ou componente defeituosos, eventualmente causador do dano, ainda que incorporados ao produto final adquirido pelo consumidor.
Pela importância do instituto, a solidariedade ainda vem reafirmada e outra passagens da legislação consumerista. Nesse sentido, o legislador fez prever a solidariedade de todos os fornecedores pelos vícios de produtos (art. 18 e 19), bem como a responsabilidade do fabricante, produtor, construtor e do importador pelo fato do produto (art. 12). Além disso, trata também da solidariedade das sociedades consorciadas (art. 28, § 3°) e do fornecedor de serviços pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos (art. 34).
Assim, na eventualidade de dano e havendo mais de um participante na cadeia de produção/distribuição do produto ou serviço causador do dano, o consumidor pode escolher a quem demandar: pode propor a ação contra o fornecedor imediato, ou contra o fornecedor mediato ou, em última análise, contra todos os que, de alguma forma, participaram da cadeia de produção e distribuição do produto no mercado de consumo, quando então formar-se-á um litisconsórcio passivo facultativo (CPC, art. 1136).

9. Conclusão

A responsabilidade civil prevista na legislação de consumo é diferente do Código Civil e funda-se na responsabildie objetiva (sem culpa) e na solidariedade entre todos os participantes da cadeia de produção, distribuição ou comercialização de produtos ou serviços.
Dessa forma pouco importa ser franqueado ou franqueador tendo em vista que o consumidor tem a opção de demandar qualquer dos dois, ou mesmo os dois conjuntamente, em face dos danos eventualmente sofridos.
A distinção entre franqueado e franqueador, especialmente no que diz respeitos às suas obrigações, só tem importância entre eles, isto é, inter partes, de sorte que, na eventualidade de condenação de um quando a responsabilidade for do outro, caberá ação de regresso daquele que indenizou em face do verdadeiro casusador do dano.
A prevenção de danos dofranqueador em relção ao franqueado poderá ser resolvida via a obrigastoriedade de contratação de seguros de danos, o que pode ser perfeitamente possível de inserir como cláusula no contrato de franchising.

10. Bibliografia
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 Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.
 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil, p. 520.
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 Informe obtido no site < HYPERLINK “https://pt.wikipedia.org/wiki/McDonald%27s” https://pt.wikipedia.org/wiki/McDonald%27s>, acesso em 17/6/2020.
 MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – Contratos, 4ª. ed. São Paulo: Rumo legal, 2018, p. 301.
 ETCHEVERRY, Raúl Aníbal, posgrado UBA Unidad IV , “El derecho laboral y su problemática referida a la empresa”, jul. 2013.
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 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil, p. 526.
 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos, p. 53-54
 SENISE LISBOA, Roberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo, p. 42.
 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor, p. 239
 ALVIM, Arruda et all, Código do consumidor comentado, p. 42.
 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor, p.159.
MARINS, James. Responsabilidade da empresa pelo fato do produto, pp. 100-101.
 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro, p. 79.
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 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro, p. 80.
 Cf. Silvio Luis Ferreira da Rocha. Responsabilidade civil do Fornecedor pelo fato do produto no direito brasileiro, p. 82-83.
 MELO, Nehemias Domingos de. Da defesa do consumidor em juízo, p. 149/150.

Autor: Nehemias Domingos de Melo

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica do conceito de família (2.1 Origem da família na antiguidade; 2.2 A família no Direito Romano; 2.3 A família durante a Idade Média; 2.4 A família e a Revolução Industrial; 2.5 A família segundo a ótica dos Códigos do Século XIX; 2.6 A família segundo a Declaração Universal dos Direito Humanos; 2.7 A família brasileira após a Constituição de 1988; 2.8 A família argentina após a reforma constitucional de 1994; 2.9 A família pós-moderna do século XXI). 3. Gestação por substituição. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.

1. Introdução

No presente trabalho pretendemos fazer uma analise comparada do direito argentino e brasileiro no tocante ao instituto da gestação por substituição, também chamado de maternidade sub-rogada ou popularmente “barriga de aluguel”, dentre várias outras denominações.
Para isso faremos primeiro uma breve abordagem histórica do direito de família e sua evolução ao longo do tempo, culminando com os novos conceitos de família na era pós-moderna.
Em seguida e considerando a importância da prole na constituição e a continuidade da família, dentre outros aspectos, trataremos das formas de filiação e o princípio do melhor interesse para a criança.
Faremos também um cotejo entre as iniciativas legislativas no Brasil e uma breve analise do instituto nos termos como fora previsto no projeto do novo Código Civil e Comercial Argentino.

2. Evolução histórica do conceito de família

Para bem entender a matéria é importante fazer um retrospecto histórico para compreender o que é a família atualmente tendo em vista a evolução desse conceito ao longos dos anos.

2.1 Origem da família na antiguidade:

A família surge como um fato natural, quer dizer próprio da natureza humana, baseada fundamentalmente na necessidade de convivência entre as pessoas (afetividade); na necessidade da perpetuação da espécie (formação da prole); de reforço da mão de obra doméstica (função econômica) e até mesmo como um dever cívico, já que a prole iria servir aos exércitos de seus respectivos Estados (função política), sem esquecer a função religiosa, tendo em vista que o pai de família, na antiguidade, era ao mesmo tempo, o chefe político e religioso de sua comunidade.

2.2 A família no Direito Romano:

Embora a palavra família tivesse vários significados no direito romano, para o nosso estudo importa a família com significado de agrupamento de pessoas ligadas entre si e sujeita ao pater familia.
Nesse sentido, cumpre destacar que houve duas fases marcantes no direito romano:
(1ª. fase): no antigo direito romano a família era organizada em torno do pater familia que exercia sobre os filhos direito de vida e de morte, e no qual a mulher cumpria um papel de serviçal subserviência. O chefe de família era autoridade máxima sendo, a um só tempo, chefe político, religioso, sacerdotal e jurisdicional (pater potestas).
(2ª. fase): Já no século IV DC, com o imperador Constantino, as regras foram atenuadas e a família tomou contornos mais de ordem moral e religiosa, permanecendo o marido como o chefe de família, porém dando-se maior autonomia à mulher. Nesse período também foi permitido aos filhos economia própria, especialmente os militares que podiam administrar seus próprios os soldos e com ele formar um patrimônio. Assim também os intelectuais e os artistas.

2.3 A família durante a Idade Média:

Nesta fase predominou a família organizada em torno do trabalho agrário, principalmente os camponeses, sob o comando dos pais, preservando-se a convivência da unidade familiar.
A mulher devia obediência plena ao marido e deveria estar sempre às suas ordens, desde as camponesas até as mulheres da nobreza. Enquanto solteiras estavam submetidas ao poder de seus pais. Com o casamento, assumia nova família cujo chefe agora era seu marido.
Nesse sistema, as filhas eram totalmente excluídas da sucessão, pois quem recebia a herança era o primogênito. Como a mulher ao se casar iria assumir a família do marido, isso servia de justificativa para a sua exclusão do direito sucessório tendo em vista que não daria continuidade ao culto familiar, base da sociedade medieval.
Sob forte influência do cristianismo, nessa época a única família reconhecida era a cristã, ou seja, aquela formada pelo casamento que se regia, exclusivamente, pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único aceito, admitido e conhecido.

2.4 A família e a Revolução Industrial:

Na fase pré Revolução Industrial a família tinha uma função essencialmente econômica, pois de duas uma: ou os filhos ajudavam os pais em seus ofícios (artesões) ou na atividade agro-pastoril (subsistência).
Com a Revolução Industrial e a introdução das máquinas, com a produção em série e o desenvolvimento dos centros urbanos houve, por assim dizer, o início da desagregação familiar tendo em vista que a prole procurava emprego nas áreas urbanas abandonando seus redutos familiares.

2.5 A família segundo a ótica dos Códigos do Século XIX:

Os Códigos promulgados pelas diversas nações a partir do Código Napoleônico (Código Civil Frances de 1804), inclusive o argentino de 1869 (Vélez Sársfield) e o brasileiro de 1916 (Clovis Bevilaqua), adotaram o regime de família patriarcal, ou seja, toda a organização da família girava em torno do chefe da família – o marido, estabelecendo algumas característica marcantes, vejamos:
O casamento civil substitui o casamento religioso para efeito de proteção e reconhecimento pelo Estado;
A família reconhecida pelo Estado é somente a legítima, de sorte que qualquer outra forma de união passa a ser proscrita e qualificada como concubinato;
A indissolubilidade do vinculo familiar como forma de perpetuar a união entre os cônjuges, cujo vinculo somente era desfeito pela morte de um dos contraentes ou pela anulação do casamento;
Diferenciação de direito entre os filhos legítimos e os demais outros (chamados de adulterinos, bastardos, espúrios ou incestuosos), reforçando assim a idéia de família legítima; e,
O homem é o chefe de família (sistema patriarcal), a mulher cumpre um papel de auxiliar e os filhos estão submetidos ao pátrio poder. Em síntese: todos devem obediência ao chefe da família.

2.6 A família segundo a Declaração Universal dos Direito Humanos:

A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948 proclamou a igualdade de direitos entre homens e mulheres no que se refere ao casamento (art. 16, caput). Da mesma forma com os filhos havidos ou não do casamento ao preceituar que “todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social” (art. 25, II).
Considerou ademais que a “família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado” (art. 16, III).
Além disso, ao positivar o princípio da dignidade da pessoa humana e proclamar a igualdade entre todos os seres humanos, abriu a discussão sobre a igualdade dos cônjuges e dos filhos ao preceituar em seu artigo primeiro: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

2.7 A família brasileira após a Constituição de 1988:

A Constituição Federal de 1988, em consonância com o preceituado na Declaração Universal dos Direito Humanos, provocou uma revolução de caráter normativo excepcional no direito de família no Brasil, cujos efeitos tiveram o condão de também promover uma revolução de conceitos na mentalidade do povo brasileiro ao proclamar:
A dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1°, III). Tanto o legislador quanto especialmente o aplicador da norma, não pode mais pensar o direito sem se ater a esse fundamento que é, a bem da verdade, um valor;
A igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges na sociedade conjugal (art.226, § 5°). A partir deste dispositivo a mulher deixa de ser uma pessoa de segunda classe para se equiparar ao marido em direitos e deveres na condução da família. Substitui-se o pátrio poder pelo “poder familiar”.
A igualdade entre os filhos, pouco importando se seu vínculo com os pais é de origem biológica (advinda do casamento ou mesmo fora dele) ou por vínculo jurídico, como no caso dos adotados e os advindos de inseminação artificial heteróloga (art. 227, § 6º);
A família para proteção do Estado não é só a matrimonial, mas também as originárias da união estável (art. 226, § 3°), bem como as famílias monoparentais (art.226, § 4°), deixando em aberto a possibilidade de reconhecimento de outras formas de família; e,
O planejamento familiar é livre decisão do casal, voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art.226, §7).

2.8 A família argentina após a reforma constitucional de 1994:

Com a reforma da Constituição da Nação Argentina de 1994 foi incorporada diversas modificações importantes ao texto constitucional originário. Dentre estas modificações cabe destacar que modernizou e definiu o texto constitucional, para fazer frente aos novos tempos, especialmente depois do período de exceção que recaiu sobre aquele país. Entre estas modificações introduziu os direitos de terceira e quarta geração, estatuiu normas para defesa democracia e da própria Constituição, definiu as características dos órgãos de governo e novos órgãos de controle e, especialmente, concedeu prioridade legal aos tratados internacionais.
Ao conceder prioridade legal aos tratados internacionais a Constituição fez por incorporar ao ordenamento jurídico argentino diversas Convenções e Tratados versando sobre direitos de família, especialmente, de la Convención sobre los Derechos del Niño; la Convención sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; Convención Interamericana sobre Conflictos de Leyes en Materia de Adopción de Menores; la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica) de 1969, dentre outros.
Outro aspecto importante é que o artigo 16 consagrou a igualdade jurídica entre as pessoas, não se admitindo prerrogativas de sangue, nem de nascimento, nos seguintes termos: “La Nación Argentina no admite prerrogativas de sangre, ni de nacimiento: no hay en ella fueros personales ni títulos de nobleza. Todos sus habitantes son iguales ante la ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que la idoneidad. La igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas.
Como leciona a professora Marisa Herrera, com a autoridade de quem integrou a Comissão de Revisão do Código Civil argentino, “la llamada “constitucionalización del derecho civil” y, dentro de este, la “constitucionalización del derecho de familia” han permitido el ingreso de varias revisiones críticas en la noción misma de familia, básicamente aquella centrada en la familia matrimonial, heterosexual y principalmente centrada en la procreación, cuyo rol de cuidado debía quedar a cargo de las mujeres. Uno de los principios de derechos humanos que han promovido tal revisión ha sido el de igualdad y no-discriminación”.
E comentando a recente aprovação do casamento igualitário naquele país a ilustre mestra assevera: “Precisamente, ha sido este principio básico en todo Estado Democrático de derecho el que auspició en la Argentina la sanción en fecha 15/07/2010 de la Ley 26.618, que extiende la institución del matrimonio civil a las parejas del mismo sexo, es decir, que habilita esta figura a todas las personas con total independencia de su orientación sexual, convirtiéndose así en el primer país de América latina que adopta una postura legislativa de este tenor”.

2.9 A família pós-moderna do século XXI:

Além das formas tradicionais de famílias reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro e argentino, cabe destacar que novas formas vêm surgindo, alargando o conceito de família para albergar novas situações advindas da vida moderna.
Como preleciona a professora Luciana Scotti, “en la Sociedad internacional, globalizada, intercultural del Siglo XXI conviven diversas concepciones, nuevos paradigmas, múltiples modelos de familia: uniones de hecho, familias monoparentales, matrimonios heterosexuales con o sin hijos biológicos, matrimonios homosexuales, matrimonios o parejas con hijos adoptivos, matrimonios poligámicos, matrimonios islámicos, matrimonios “solo consensu”, familias formadas por diversos vínculos de parentesco, las denominadas “familias ensambladas”, entre otras.
Partindo dessa premissa, e sem pretensão de esgotar o assunto, podemos identificar, para efeito do presente estudo, as seguintes formas de família.
A família matrimonial ou legal: enquanto família legalmente constituída através do casamento civil ou religioso com efeitos civis (legal porque realizado nos moldes estabelecido em lei);
A família convivencial ou informal: a família de fato, ou seja, aquela formada de maneira informal pela união estável entre homem e mulher;
A família homoafetiva: aquela formada pela união de pessoas de mesmo sexo seja pela união estável ou pelo casamento;
A família monoparental: aquela constituída por um dos genitores e sua prole (natural ou civil), podendo-se até incluir o padrasto que mora com o enteado cujos parentes faleceram.
A família pluriparental: aquela formada por parentes tais como dos irmãos que moram sozinhos; ou do tio que mora com o sobrinho ou, até mesmo, de pessoas de parentesco distante que decidem morar juntas no mesmo lugar.
A família reconstituída ou mosaica
que os argentinos chamam de “ensambladas”: Aquela formada por pessoas que tem filhos de uma relação anterior e se unem novamente a outra pessoa que também pode ter filhos. Assim, essa nova família será constituída pelo casal e os filhos que cada um (ou só de um deles) trouxe da relação anterior, mais os eventuais filhos do próprio casal (alguém já sintetizou esse tipo de família em: eu, você, os meus, os seus e os nossos filhos).
Nesse cenário em que várias formas de famílias são admitidas e reconhecidas pelo direito, não se pode olvidar da importância de outras formas de gestação e procriação, possíveis hoje a partir da ciência, como forma de permitir seja as famílias constituídas, ampliadas e perpetuadas.

3. A gestação por substituição

Da mesma forma em que o conceito de família mudou ao longo da história, especialmente após o século XX, o conceito e as formas de procriação também mudaram a partir de novas técnicas que permitem hoje seja um filho gerado não da forma tradicional.
Os avanços tecnológicos nos permitem hoje considerar a hipótese de um casal manter relações sexuais sem riscos de reprodução, assim como é perfeitamente possível haver procriação sem que haja o contato sexual.
Com as novas técnicas de reprodução assistida é possível ao casal desejar e ter um filho superando toda e qualquer impossibilidade física, tanto de fecundação quanto de reprodução.
Neste cenário não se pode olvidar de que a prole para um casal pode significar muito mais do que apenas o desejo de ter filhos. A procriação embora não tenha mais as mesmas características e funções que tinha no passado, ainda representa a possibilidade de continuidade da família de sorte a perguntar: ter um filho é um direito ou uma faculdade?
Embora existam defensores das duas correntes, por obvio que seria uma incoerência garantir-se o direito à constituição da família e ao mesmo tempo não garantir a procriação como forma de continuidade da mesma. Por isso entendemos que mais que uma faculdade, procriar é um direito, independentemente de ser um ato que faz parte da própria natureza humana.
Uma das formas de garantir ao casal o direito à procriação é a gestação por substituição, também chamada de gestação sub-rogada, locação de útero, cessão de útero, gestação por outrem ou, popularmente “barriga de aluguel”.
Conforme ensina a professora Luciana Scotti, “La maternidad subrogada es el compromiso entre una mujer, llamada “mujer gestante”, a través del cual ésta acepta someterse a técnicas de reproducción asistida para llevar a cabo la gestación en favor de una persona o pareja comitente, llamados él o los “subrogantes”, a quien o a quienes se compromete a entregar el niño o niños que pudieran nacer, sin que se produzca vínculo de filiación alguno con la mujer gestante, sino con él o los subrogantes”.
Nesse cenário, é perfeitamente possível que uma mulher, por qualquer imperfeição físico-biológica não consiga desenvolver uma gestação com regularidade. Nessas circunstâncias só resta ao casal concretizar o sonho de ter filhos através da gestação por substituição, utilizando-se para isso do útero de outra mulher na qual será inoculado o embrião constituído a partir do material genético do casal (fecundação artificial homóloga).
É também possível com essa técnica, que o casal recorra a doador, seja de óvulos ou mesmo de sêmen, no caso da mulher ou mesmo marido ou companheiro não sejam férteis (fecundação artificial heteróloga).
No Brasil ainda não há legislação regulando a matéria. O único dispositivo que trata da matéria, assim mesmo sob o aspecto ético, é a Resolução CFM nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina. Dentre outros aspectos, considera importante tratar da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas e a legitimidade do anseio de superá-la; que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários dos casos de reprodução humana; que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica; editando ainda diversos preceitos para delimitar o exercício dessa técnica.
O capítulo VII da referida Resolução tratou especificamente sobre a gestação de substituição (doação temporária do útero) prescrevendo que as clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. Preceitua também que as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o quarto grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. E, ainda, que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
Ainda no tocante à matéria, há também uma regulamentação promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, dentre outras medidas, regula a questão do registro de nascimento das crianças geradas por reprodução assistida, o que se deu através do provimento nº 52, de 14 de março de 2016 (atualizado pelos Provimentos nº 63 de 14/11/2017 e nº 83 de 14/8/2019).
Visando suprir a inexistência de lei há várias iniciativas legislativas no Congresso Nacional brasileiro, cabendo destacar Projeto de Lei do Senado de n° 90, de 1999, de autoria do senador Lúcio Alcântara, que regulamenta minuciosamente a matéria, inclusive criminalizando determinadas condutas, cabendo destacar o previsto no art. 7º: “Fica permitida a gestação de substituição em sua modalidade não remunerada conhecida como doação temporária do útero, nos casos em que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na usuária e desde que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a mãe substituta ou doadora temporária do útero”. Prescreve ainda em seu parágrafo único: “A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou comercial, ficando vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou barriga de aluguel”.
O Projeto original do senador Lúcio Alcântara sofreu diversas alterações e gerou dois substitutivos, um de autoria do Senador Roberto Requião e outro do Senador Tião Viana, resultando em melhor elaboração, cujo texto foi enviado em junho de 2003, pelo Senador José Sarney, à Câmara dos Deputados e recebeu a identificação de PL nº 1.184/03.
O PL n° 1.184/03 encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados estando a ele apensados os seguintes projetos:
O Projeto de Lei n.º 2.855, de 1997, de autoria do Deputado Confúcio Moura, que dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida e dá outras providências.
Projeto de Lei n.º 4.665, de 2001, de autoria do Deputado Lamartine Posella, que dispõe sobre a autorização da fertilização humana “in vitro” para os casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização e dá outras providências. Permite a utilização das técnicas de fertilização “in vitro” apenas aos casais comprovadamente incapazes de gerar f i l h o s p e l o p r o c e s s o n a t u r a l d e f e r t i l i z a ç ã o  s o m e n t e e m c l í n i c a s a u t o r i z a d a s p e l o M i n i s t é r i o d a S a ú d e . P r o j e t o d e L e i n . º 1 2 0 , d e 2 0 0 3 , d e a u t o r i a d o D e p u t a d o R o b e r t o P e s s o a , q u e d i s p õ e s o b r e a i n v e s t i g a ç ã o d e p a t e r n i d a d e d e p e s s o a s n a s c i d a s d e t é c n i c a s d e r e p r o d u ç ã o a s s i s t i d a  . I n t e n t a m o d i f i c a r a L e i n . º . 8 5 6 0 , d e 2 9 d e d e z e m b r o d e 1 9 9 2 , q u e r e g u l a a i n v e s t i g a ç ã o d e p a t e r n i d a d e d o s f i l h o s h a v i d o s f o r a d o c a s a m e n t o , e d á o u t r a s p r o v i d ê n c i a s  . P r o p õ e q u e o s n a s c i d o s d e t é c n i c a s d e r e p r o d u ç ã o a s s i s t i d a t e n h a m o d i r e i t o d e s a b e r a i d e n t i d a d e d e s e u s p a i s b i o l ó g i c o s , m a s s e m q u e i s s o l h e s d ê d i r e i t o s s u c e s s ó r i o s . P r o j e t o d e L e i n . º . 1 . 1 3 5 , d e 2 0 0 3 , d e a u t o r i a d o D e p u t a d o J o s é A r i s t o d e m o P i n o t t i , q u e d i s p õ e s o b r e a r e p r o d u ç ã o h u m a n a a s s i s t i d a  . P r o j e t o d e L e i n.º. 2.061, de 2003, de autoria da Deputada Maninha, que disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como um dos componentes auxiliares no processo de procriação, em serviços de saúde, estabelece penalidades e dá outras providências.

Quer dizer, existem iniciativas legislativas no Brasil que buscam regulamentar a matéria, porém ainda nos encontramos longe de obter o consenso sobre a matéria de sorte que, enquanto isso, a única disposição sobre a qual se pode apoiar é a Resolução do Conselho Federal de Medicina, retro mencionado, e na jurisprudência resultante dos casos já julgados pelos nossos Tribunais.
Na argentina também há um vazio legislativo quanto à matéria. O tema poderia ter sido regulamentado quando da aprovação do novo Código Civil e Comercial, que previa expressamente a regulamentação da gestação por substituição, porém o Parlamento Argentino optou por não aprovar as disposições atinentes à matéria, perdendo a oportunidade de fazer a Argentina ser o primeiro país da América Latina a regulamentar a gestação por substituição.
Tratando especialmente da gestação por substituição a professora Marisa Herrera, tendo participado da comissão que redigiu o projeto do novo Código Civil e Comercial argentino, assim se expressou: “Fue uno de los temas más difíciles dentro del derecho de família”. Diversos temas de direito de família foram polemizados, porém el de la gestación por sustitución fue el tema más complejo para los expertos, disse Marisa Herrera, sobre todo por las críticas, algunas muy valiosas, de feministas y otros colectivos que temen la “cosificación” de la mujer o el eventual lucro con su cuerpo, sobre todo entre las más pobres.
Explicou ainda a ilustre doutrinadora que os redatores do projeto do novo Código Civil e Comercial tinham duas opções: reconhecer a existência da prática e regulamentar ou simplesmente ignorá-la. A opção da comissão foi pelo reconhecimento. Nesse sentido explicita: “No sé si este método es ideal, pero existe. Se está haciendo mucho en el extranjero y no es una opción ignorarlo. Es mejor tener una ley que regule el proceso, lo controle y que proteja en primer lugar al niño, pero también a la gestante y a quienes quieren tener un hijo biológico por este método”.
O projeto de Código Civil argentino foi minudente ao tentar regulamentar a matéria, procurando disciplinar todo o procedimento, não deixando lacunas para interpretações. Quer dizer, se fosse aprovado conforme a redação da Comissão, não haveria margem para manobras porque as regras teriam ficado claras. “La regulación legal, en cambio, puede solucionar los eventuales conflictos que la práctica plantee. El sistema proyectado, que prevé la intervención judicial previa, intenta anticiparse a esos problemas, en tanto exige que lo convenido por todas las partes sea aprobado antes del implante del embrión. Eneste proceso judicial previo deben intervenir varios especialistas, demodo tal que el abordaje sea completo y acorde a la complejidad que lasituación plantea. La prohibición al médico de proceder a la transferencia in esa autorización incita al cumplimiento de los requisitoslegales. Como la intervención judicial es anterior a la implantación en la gestante, el certificado de nacimiento debería emitirse, directamente, con el nombre de comitentes, como sucede en California; de tal modo, la gestante no figura como madre. Es decir, no hay “traspaso”, sino queel o los comitentes son legalmente los padres. El sistema proyectado tiende, pues, a la seguridad jurídica en primer lugar, del niño nacido, yen segundo lugar de todos los intervinientes en el acuerdo originário”
Nesse sentido e explicando como seria a regulamentação a professora Marisa Herrera resumiu os pontos mais importantes da seguinte forma:
El proyecto establece que la gestación por sustitución debe ser aprobada por un juez antes de que sea implantado el embrión.
El magistrado solicitará certificados médicos y psicológicos que acrediten la buena salud de la gestante y su consentimiento “libre, pleno e informado”.
Un equipo multidisciplinario del tribunal deberá asesorar a la gestante sobre los riesgos y las implicancias de someterse a la práctica.
La mujer no podrá aportar sus óvulos y al menos uno de los padres deberá suministrar sus gametos (óvulos o semen). Todo, para asegurar que no haya disputa por la filiación.
Las expertas consideran que para acceder a la práctica, “la pareja o la persona interesada debería demostrar incapacidad de concebir o de llevar a término el embarazo”.
También precisan que para evitar que sea “un trabajo impuesto por la pobreza y tolerado por el Estado”, la gestante solo podrá someterse a esta práctica dos veces.
También deberá tener ya al menos un hijo propio “para asegurarse que comprende la gravedad de su compromiso”.
El acuerdo debe ser gratuito. Los gastos médicos, de asistencia o alimentación que puedan brindarse no implican la pérdida del carácter altruista de la práctica. Y si existiera una retribución material, se anticipa, el límite al “comercio” se aseguraría con el tope de dos gestaciones.
Los médicos no podrán iniciar el procedimiento sin autorización previa de la justicia en cada caso, se establece en el proyecto.
O projeto de novo Código Civil argentino prestigiava a segurança jurídica de todas as partes envolvidas, pois não deixava margem a dúvidas quanto a filiação da criança por nascer tendo em vista que pais legalmente seriam aqueles que o tribunal tenha, previamente, autorizado e não aquela que tenha emprestado seu ventre para a gestação. Além disso, com todas as demais exigências que poderiam ter sido impostas pela lei, acreditamos que o tema estaria devidamente resguardado do ponto de vista legal.
Contudo só nos resta lamentar que não tenha sido aprovada essa proposta revolucionária, porém fica a sugestão para que o legislador ordinário, não só da Argentina, mas também de outros países, poderem retomar a questão.

4. Conclusão

Conforme notas introdutórias, demonstramos que a família sofreu profundas alterações ao longo da história, especialmente depois do século XX. Se antes a família era vista enquanto núcleo familiar constituído pelo pai, mãe e sua prole, hoje esse conceito não mais subsiste tendo em vista as outras formas de família reconhecidas nos modernos ordenamentos jurídicos.
Se o direito existe para regular o fato social, é inegável que a gestação por substituição é um fato que as técnicas científicas nos permitem cogitar, logo urge que o legislador, tanto argentino quanto brasileiro, enfrente esta questão e a regulamente para maior segurança jurídica da sociedade.
Não é possível admitir-se que nos dias atuais, enquanto a biotecnologia possa propiciar meios e oportunidades para que as pessoas estéreis possam ter filhos, não exista regulamentação legal para essa prática o que, a toda evidência gera uma insegurança jurídica que inibe a utilização dessa prerrogativa em larga escala.
De sorte que, independentemente das questões morais e religiosas que o tema suscita, urge, tanto no Brasil quanto na Argentina, regulamentar o instituto da gestação por substituição como meio de permitir a casais que estejam impossibilitados de terem filhos de forma natural, bem como casais homoafetivos ou mesmo pessoas solterias, a possibilidade de optarem por essa forma de procriação, que lhes possam permitir constituir uma família na mais completa acepção da palavra.

5. Bibliografia
BIELSA, Rafael. Derecho constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1959.
EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Tratado de derecho constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1994;
HERRERA, Marisa. Nuevas tendencias en el derecho de familia de hoy. Principios, bases y fundamentos. Primera parte. MJ-DOC-5595-AR | MJD5595, 7-nov-2011.
HERRERA, Marisa et all. Por qué sí a la regulación de la gestación por sustitución, a pesar de todo. Disponível em:  HYPERLINK “http://pt.scribd.com/doc/109412311/Gestacion-por-sustitucion” http://pt.scribd.com/doc/109412311/Gestacion-por-sustitucion, acesso em 23/03/2013.
MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – Família e sucessões, 4ª ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018, v.5
SCOTTI, Luciana B. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas. Buenos Aires: Revista Pensar en Derecho, 2012, p. 268/289.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a utilização de útero de substituição. Acesso em 15/03/2013. Disponível em:  HYPERLINK “http://www.colegioregistralmg.org.br/Content/Images/artigoacademico/utero_por_substituicao.pdf” http://www.colegioregistralmg.org.br/Content/Images/artigoacademico/utero_por_substituicao.pdf,.
VALENTE, Marcela. Argentina legalizará la gestación por sustitución. Disponível em  HYPERLINK “http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=” http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=, 102463 acesso em 23/03/2013.
 Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.
 MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – Família e sucessões, 4ª ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018, v.5, pp. 3-7.
 O divórcio no direito argentino foi instituído pela Lei n º 23.515, de 12 de junho de 1987. O brasileiro com a Lei nº 6515 de 26 de dezembro de 1977.


 HERRERA, Marisa. Nuevas tendencias en el derecho de familia de hoy. Principios, bases y fundamentos. Primera parte. MJ-DOC-5595-AR | MJD5595, 7-nov-2011.
 SCOTTI, Luciana. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas, p. 268.
 SCOTTI, Luciana. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas, p. 9.
 Esta resolução veio na sequência de outras que trataram do mesmo tema. A primeira delas foi a de n° 1.358 de 1992, que foi reeditada em 2010 sob o n° 1.957 e depois revogada pela Resolução CFM nº 2.013/2013, ao depois revogada pela Resolução CFM nº 2.121/2015.
Estes provimentos também tratam da questão da filiação sócioafetiva.

Autor: Nehemias Domingos de Melo

Resumo: No presente trabalho pretendemos fazer uma analise comparada do direito argentino e brasileiro no tocante ao instituto da “Família Ensamblada”, que no Brasil é conhecida por família “reconstituída” ou “recomposta”, cuja principal característica é o fato deste tipo de família ser constituída a partir do casamento ou da união estável, na qual um ou ambos os membros traz para a nova família pelo menos um filho do relacionamento anterior.

Abstract: In this essay we intend to make a comparative analysis of the Argentine and Brazilian law regarding the institute of “assembled family”, which in Brazil is known for family “reconstituted” or “recomposed”, whose main characteristic is the fact that this family type is formed from the marriage or stable relationship in which one or both partners bring to the new family at least one child from previous relationship.

Sumário: 1. Introducción. 2. Evolución histórica del concepto de familia (2.1. Origen de la familia en la antigüedad. 2.2 La familia según la óptica de los Códigos del Siglo XIX. 2.3 La familia según la Declaración Universal de los Derechos Humanos. 2.4 La familia brasileña después de la Constitución de 1988. 2.5 La familia argentina después de la reforma constitucional de 1994. 2.6 La familia pos-moderna del siglo XXI). 3. Características de la familia ensamblada. 4. La familia ensamblada en Brasil. 5. La familia ensamblada en Argentina. 6. Conclusión. 7. Bibliografía.

1. Introducción

En el presente trabajo pretendemos hacer un análisis comparado del derecho argentino y brasileño en lo tocante al instituto de la “Familia Ensamblada”, que en Brasil es conocido por familia “reconstituida” o “recompuesta”, cuya principal característica es el hecho que, este tipo de familia sea constituida a partir del casamiento o la unión estable, en la cual uno o ambos miembros trae para la nueva familia al menos un hijo de la anterior relación.
En este tipo de familia, uno o ambos adultos, van a ser padrastro o madrastra del hijo del otro, sin prejuicio de que esa nueva pareja formada tenga hijos comunes. Se define ese tipo de familia como siendo: “YO, USTED, LOS MIOS, LOS TUYOS Y LOS NUESTROS”.
Para eso haremos primero un breve abordaje histórico al derecho de familia y su evolución a lo largo del tiempo, culminando con los nuevos conceptos de familia en la era pós-moderna.
Seguidamente y considerando la importancia de la prole, en la constitución y continuidad de la familia, entre otros aspectos, trataremos de las formas de filiación y el principio de mejor interés para las criaturas.
Finalmente, haremos también una comparación entre las iniciativas legislativas en Brasil y un breve análisis del instituto en los términos como terminó siendo aprobado en el nuevo Código Civil Argentino.

2. Evolución histórica del concepto de familia

2.1. Origen de la familia en la antigüedad:

La familia surge como un hecho natural, quiere decir propio de la naturaleza humana, basada fundamentalmente en la necesidad de convivencia entre las personas (afectividad); en la necesidad de perpetuación de la especie (formación de la prole); del refuerzo de mano de obra doméstica (función económica) y hasta mismo como un deber cívico, ya que la prole serviría a los ejércitos de sus respectivos Estados (función política), sin olvidar la función religiosa, teniendo en vista que el padre de familia, en la antigüedad, era al mismo tiempo, el jefe político y religioso de su comunidad.

2.2 La familia según la óptica de los Códigos del Siglo XIX:

Los Códigos promulgados por las diversas naciones a partir del Código Napoleónico (Código Civil Francés de 1804), inclusive el argentino de 1869 (Vélez Sarsfield) y el brasileño de 1916 (Clovis Bevilaqua), adoptaron el régimen de familia patriarcal, o sea, toda la organización de la familia giraba en torno del jefe de familia – el marido, estableciendo algunas características predominantes, a saber:
El casamiento civil substituye el casamiento religioso para efectos de protección y reconocimiento del Estado;
La familia reconocida por el Estado es solamente la legítima, de modo que cualquier otra forma de unión pasa a ser proscripta y calificada como concubinato;
La indisolubilidad del vínculo familiar como forma de perpetuar la unión entre los cónyuges, cuyo vínculo solamente era deshecho por muerte de uno de los contrayentes o por anulación del casamiento;
Diferenciación de derechos entre los hijos legítimos y los demás (otros hijos producto de adulterios, bastardos, espurios o incestuosos), reforzando así la idea de familia legítima;
El hombre es jefe de familia (sistema patriarcal), la mujer cumple un papel de auxiliar y los hijos están sometidos al patrio poder. En síntesis: todos deben obediencia al jefe de familia.

2.3 La familia según la Declaración Universal de los Derechos Humanos:

La Declaración de la Organización de las Naciones Unidas (ONU) de 1948 proclamó la igualdad de derechos entre hombres y mujeres en lo que se refiere al casamiento (art. 16, caput). De la misma forma con los hijos habidos o no del casamiento, al preceptuar que “todas las criaturas, nacidas dentro o fuera del matrimonio gozarán de la misma protección social” (art. 25, II).
Consideró además que la “familia es el núcleo natural y fundamental de la sociedad y tiene derecho a la protección de la sociedad y del Estado” (art. 16, III).
Además de eso, al positivar el principio de la dignidad de la persona humana y proclamar la igualdad entre todos los seres humanos, abrió la discusión sobre la igualdad de los cónyuges y de los hijos al preceptuar en su artículo primero: “Todas las personas nacen libres e iguales en dignidad y derechos”.

2.4 La familia brasileña después de la Constitución de 1988:

La Constitución Federal de 1988, en concordancia con lo preceptuado y en la Declaración Universal de los Derechos Humanos, provocó una revolución de carácter normativo excepcional en el derecho de familia, cuyos efectos tuvieron la condición también de promover una revolución de conceptos en la mentalidad del pueblo brasileño al proclamar:
La dignidad de la persona humana, como uno de los fundamentos del Estado Democrático de Derecho (art. 1°, III). Tanto el legislador, como especialmente el aplicador de la norma, no puede más pensar en el derecho sin atenerse a ese fundamento que es, a bien de la verdad, un valor;
La igualdad de derechos y deberes entre los cónyuges en la sociedad conyugal (art.226, § 5°). A partir de esta disposición la mujer deja de ser una persona de segunda clase, para equipararse al marido en derechos y deberes en la conducción de la familia. Se substituye el patrio- poder (patria-potestad) por el “poder familiar”.
La igualdad entre los hijos, importando poco, si su vínculo con los padres es de origen biológico (producto del casamiento o mismo fuera de él ), o por vínculo jurídico, como en caso de los adoptados y los nacidos de inseminación artificial heterológica (art. 227, § 6º);
La familia para protección del Estado no es solo la matrimonial, sino también las originadas de unión estable (art. 226, § 3°), como las familias monoparentales (art.226, § 4°), dejando en abierto la posibilidad de otras formas de familia; y,
El planeamiento familiar es libre decisión del matrimonio, enfatizando los principios de la dignidad de la persona humana y de la paternidad responsable (art.226, §7).

2.5 La familia argentina después de la reforma constitucional de 1994:

Con la reforma de la Constitución de la Nación Argentina de 1994 fueron incorporadas diversas modificaciones importantes al texto constitucional original. Dentro de estas modificaciones cabe destacar que modernizó y definió el texto constitucional, para hacer frente a los nuevos tiempos, especialmente después del período de excepción que recayó sobre el país. Entre estas modificaciones introdujo los derechos de tercera y cuarta generación, estatizó normas para defensa de la democracia y de la propia Constitución, definió las características de los órganos de gobierno y nuevos órganos de control y, especialmente, concedió prioridad legal a los tratados internacionales.
Al conceder prioridad legal a los tratados internacionales la Constitución incorpora al ordenamiento jurídico argentino diversas Convenciones y Tratados versando sobre derechos de familia, especialmente, de la Convención sobre los Derechos del Niño; la Convención sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; Convención Interamericana sobre Conflictos de Leyes en Materia de Adopción de Menores; la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica) de 1969, entre otros.
Otro aspecto importante es que el artículo 16 consagró la igualdad jurídica entre las personas, no admitiéndose prerrogativas de sangre, ni de nacimiento, en los siguientes términos: “La Nación Argentina no admite prerrogativas de sangre, ni de nacimiento: no hay en ella fueros personales ni títulos de nobleza. Todos sus habitantes son iguales ante la ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que la idoneidad. La igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas”.
Como indica la profesora Marisa Herrera, con la autoridad de quien integra la Comisión de Revisión del Código Civil argentino, “la llamada “constitucionalización del derecho civil” y, dentro de este, la “constitucionalización del derecho de familia” han permitido el ingreso de varias revisiones críticas en la noción misma de familia, básicamente aquella centrada en la familia matrimonial, heterosexual y principalmente centrada en la procreación, cuyo rol de cuidado debía quedar a cargo de las mujeres. Uno de los principios de derechos humanos que han promovido tal revisión ha sido el de igualdad y no-discriminación”.
Y comentando la reciente aprobación del casamiento igualitario en el país la ilustre maestra asevera: “Precisamente, ha sido este principio básico en todo Estado Democrático de derecho el que auspició en la Argentina la sanción en fecha 15/07/2010 de la Ley 26.618, que extiende la institución del matrimonio civil a las parejas del mismo sexo, es decir, que habilita esta figura a todas las personas con total independencia de su orientación sexual, convirtiéndose así en el primer país de América latina que adopta una postura legislativa de este tenor”.

2.6 La familia pos-moderna del siglo XXI:

Además de las formas tradicionales de familias reconocidas por ordenamiento jurídico brasileño y argentino, cabe destacar que nuevas formas vienen surgiendo, ampliando el concepto de familia para albergar nuevas situaciones derivadas de la vida moderna.
Como especifica la profesora Luciana Scotti, “en la Sociedad internacional, globalizada, intercultural del Siglo XXI conviven diversas concepciones, nuevos paradigmas, múltiples modelos de familia: uniones de hecho, familias monoparentales, matrimonios heterosexuales con o sin hijos biológicos, matrimonios homosexuales, matrimonios o parejas con hijos adoptivos, matrimonios poligámicos, matrimonios islámicos, matrimonios “solo consensu”, familias formadas por diversos vínculos de parentesco, las denominadas “familias ensambladas”, entre otras.
Partiendo de esa premisa, y sin pretensión de agotar el asunto, podemos identificar, para efecto del presente estudio, las siguientes formas de familia.
La familia matrimonial o legal: trata de la familia legalmente constituida a través del casamiento civil o religioso con efectos civiles (legal porque es realizado bajo normas establecidas por ley);
La familia convivencial o informal: la familia de hecho, o sea, aquella formada de manera informal por la unión de hecho entre hombre y mujer;
La familia homoafectiva: aquella formada por la unión de personas de mismo sexo sea por la unión estable o por el casamiento;
La familia monoparental: aquella constituida por uno de los genitores y su prole (natural o civil), pudiéndose hasta incluir el padrastro que vive con el adoptado, cuyos parientes fallecieron.
La familia pluriparental: aquella formada por parientes tales como: de los hermanos que viven solos; o del tío que reside con el sobrino o, también, de personas de parentesco distante que deciden vivir juntas en el mismo lugar.
La familia reconstituida que los argentinos llaman “ensambladas”: Es aquella formada por personas que tienen hijos de una relación anterior y se unen nuevamente a otra persona que también puede tener hijos. Así, esa nueva familia será constituida por el matrimonio y los hijos que cada uno (o solo de uno de ellos) trajo de la relación anterior, más los eventuales hijos del propio matrimonio.

En ese escenario en que varias formas de familias son admitidas y reconocidas por derecho es preciso considerar que el reconocimiento por estado de la posibilidad de disolución del casamiento por divorcio y, de otro lado, el reconocimiento de la unión de hecho como forma de familia regularmente constituida, amplió la posibilidad de que las personas buscaran la felicidad en una nueva unión, en caso de término de la relación familiar anterior.
Siempre en ese escenario, crece en importancia la familia ensamblada teniendo en vista que las personas se unen, por el casamiento o por la unión estable, buscando formar una familia que se pretende perenne, pero por las más diversas razones, puede suceder que así no sea, y se decida no compartir más la vida en común, buscando la felicidad en otra unión.

3. Características de la familia ensamblada

Una de las principales características en lo relacionado a la familia ensamblada, se basa en el respeto por la diversidad y la no discriminación.
Con total propiedad se puede afirmar que “los nidos, está claro, ya no son lo que eran. El clásico diseño de hornero, con una puerta única de entrada y un prolijo espacio de vida compartido por todos… Acaso sólo quede con los nidos de antaño un único hilo conductor: aquel propósito de siempre tenaz y generoso de brindar cobijo, identidad, abrazo”.
El término «familia ensamblada» fue creado en Argentina tras la entrada en vigor de la ley de divorcio (1987) ya que este grupo humano demográficamente cada vez más significativo, constituía sin embargo un caso concreto de cambio social no reconocido en lo institucional en muchos países. Por lo general, los sistemas legales mundiales no han logrado ampliar su concepto de familia para incluir así a las familias ensambladas, pese a que las investigaciones poblacionales que señalan la continuidad del incremento este tipo de familias. Sin embargo, los derechos y obligaciones legales con respecto a la familia del primer matrimonio, aunque haya sido breve, no se extienden por lo general a la familia del segundo matrimonio, aunque perdure por más tiempo y sea estable.
La idea central es la complementariedad. Conforme indica la profesora Cecilia Grossman “El cónyuge o conviviente del progenitor cumple una función complementaria que depende de cada organización familiar. Apoyo en las tareas de cuidado y educación del niño o adolescente. La extensión de la función complementaria del padre o madre afín debe ser co-construida por el grupo familiar sobre la base de la cooperación. Esto significa acuerdos en la propia pareja conviviente y concordancias con el progenitor que no convive con los hijos, sustrato esencial en la estabilidad de la familia ensamblada”.
En este contexto podemos identificar las características propias de esta forma de organización familiar, que se diferencia de las demás formas de familia en los siguientes aspectos:
Nacen de una pérdida: prácticamente todos llegan a la nueva situación después de la pérdida de una relación familiar primaria.
Los ciclos vitales (individuales, maritales y familiares) son incongruentes, lo que significa conciliar necesidades muy diferentes.
Las relaciones padre-hijo preceden a las de la pareja, lo que genera frecuentemente conflictos de lealtades.
Hay siempre un padre o una madre presente o en el recuerdo, cuya existencia como tal se mantiene, y con cuya presencia –real o virtual- hay que convivir.
Es necesario conciliar y negociar permanentemente con una ex pareja, lo que genera frecuentes conflictos y requiere contactos y negociaciones para compatibilizar dos hogares, con escalas de valores y hábitos de vida diferentes.
Se duplica la familia extensa y al ser mayor la cantidad de miembros de la familia los celos, los conflictos de intereses y también los posibles modelos vinculares se incrementan.
Las relaciones legales entre personas que conviven son ambiguas y a veces inexistentes, como se define más arriba.
Carecen de un modelo de funcionamiento, libros o centros de asesoramiento son muchos menos que los de las familias nucleares.

Así, a pesar de las dificultades naturales de la composición de ese nuevo tipo de familia, no se la puede considerar como anormal. Es un acontecimiento de vida moderna que, aun con la existencia de una familia nuclear anterior, cabe a cada uno de los integrantes de la familia ensamblada, el desafío de rechazar los prejuicios externos de aquellos que se van a erigir en jueces de moralidad y atreverse a dar sugestiones de vida que no les pertenecen.
Relacionado a las parejas de esas uniones, existe un desafío permanente que es la habilidad para administrar las relaciones afectivas de los hijos con los nuevos padre o madre afectivo(a), especialmente tratándose de la autoridad familiar.

4. La familia ensamblada en Brasil

En Brasil no hay legislación específica regulando el tema, a pesar de los avances significativos en derecho de familia, especialmente tratados en la Constitución Federal de 1988.
El Código Civil de 2002 trata de la materia en apenas un párrafo, y aun así por vías transversas, solo para instituir el parentesco por afinidad. La referida ley considera pariente por afinidad o hijo del cónyuge proveniente de una unión anterior, instituyendo un parentesco en línea recta, como descendiente de primer grado (CC, art. 1.595, § 1.º).
En otro capítulo, cuando reglamenta la disolución del casamiento, el Código Civil es enfático al preceptuar que el divorcio no modificará los derechos y deberes de los padres en relación a los hijos y, que tal situación no se altera con el eventual nuevo casamiento de cualquiera de los padres, o mismo de ambos, teniendo en vista que tal situación no podrá afectar ningún tipo de restricciones a los derechos y deberes atenientes a los padres (CC, art. 1.579 y párrafo solo).
Además, al admitir que pueda haber parentesco de otro origen que no sea resultante de la consanguineidad el Código deja en abierto la posibilidad del reconocimiento del parentesco por afinidad, incluyendo los dos padres en relación a los hijos del otro, en la familia reconstituida (CC, art. 1.593).
Por lo tanto, no hay un reglamento claro y directo en el Código Civil y eso tal vez se explique por el hecho de que el nuevo estatuto civil brasileño ya ha nacido viejo teniendo en vista que, siendo elaborado en 1973, solamente fue aprobado tres décadas después.
Más recientemente, el Congreso Nacional aprobó la ley n° 11.294/09, con la finalidad de reglamentar algunos aspectos ligados a la adopción, insiriendo modificaciones en la Ley n° 6.015/73, acrecentando el § 8º del artículo 57 de la Ley de los Registros Públicos. En esa línea de proceder, la referida ley reconoce la paternidad y maternidad socio-afectiva, especialmente para que la potestad del padrastro o madrastra pueda pasar a integrar el nombre del entenado o entenada, en los siguientes términos:
“§ 8º El entenado o entenada, habiendo un motivo ponderable en la forma prevista en los §2º y 7º de este artículo, podrá requerir al juez competente que en el registro de nacimiento, sea agregado al nombre de familia, el de su padrastro o madrastra, con las conformidad de éstos, sin perjuicio de sus apellidos de familia”.
En ausencia de reglamentación específica la jurisprudencia se ha orientado por los principios inscriptos en la Constitución Federal Brasileña y en el Estatuto de Niños y Adolescentes, especialmente el principio de la dignidad de la persona humana, de la afectividad y solidaridad, de la paternidad/maternidad socio afectiva y del mejor interés de los niños y adolescentes, para desde ahí resolver los conflictos que involucren cuestiones ligadas al ejercicio de la autoridad parental, guardia, alimentos, nombre y otras, en las cuales estén inmersos los padres afines en los hogares reconstituidos.
Cabe destacar que en Brasil se utiliza más comúnmente la terminología familia reconstituida para significar aquello que los argentinos denominan familia ensamblada. A pesar de eso, encontramos varias otras denominaciones tales como familia recompuesta, familia mosaico, familia pluriparental, familia transformada, familia rearmada, familia agregada, familia agrupada, familia combinada, familia mixta, familia extensa y hasta, familia secuencial o familia en red.

5. La familia ensamblada en Argentina

El nuevo Código Civil y Comercial Argentino trata directamente sobre la materia y una de las previsiones más interesantes es que substituye los términos, hasta cierto punto peyorativos de “padrastro” y “madrastra”, por una nueva denominación: progenitor afín, cuya definición se encuentra em el artículo 672, verbis:
ARTÍCULO 672. – Progenitor afín: Se denomina progenitor afín al cónyuge o conviviente que vive con quien tiene a su cargo el cuidado personal del niño o adolescente.
En los fundamentos se señala que para esta denominación se recurre a un vocablo ya existente en nuestro Código Civil, como es el parentesco por afinidad, que establece lazos de parentesco derivados del matrimonio con los parientes consanguíneos del cónyuge, y se lo extiende a las uniones convivenciales.
Importante destacar que el articulo sólo exige “que vive con”, el convivir, la convivencia. “Vivir en compañía de otro u otros”, no es necesario que haya una unión convivencial.
El nuevo Código trata también de la responsabilidad del progenitor a fin, estableciendo:
ARTÍCULO 673. – Deberes del progenitor afín. El cónyuge o conviviente de un progenitor debe cooperar en la crianza y educación de los hijos del otro, realizar los actos cotidianos relativos a su formación en el ámbito doméstico y adoptar decisiones ante situaciones de urgencia. En caso de desacuerdo entre el progenitor y su cónyuge o conviviente prevalece el criterio del progenitor. Esta colaboración no afecta los derechos de los titulares de la responsabilidad parental.
Encontramos también disciplinada a posibilidad de delegación del ejercicio de la responsabilidad parental en el artículo 674, in verbis:
ARTÍCULO 674. – Delegación en el progenitor afín. El progenitor a cargo del hijo puede delegar a su cónyuge o conviviente el ejercicio de la responsabilidad parental cuando no estuviere en condiciones de cumplir la función en forma plena por razones de viaje, enfermedad o incapacidad transitoria, y siempre que existiera imposibilidad para su desempeño por parte del otro progenitor, o no fuere conveniente que este último asuma su ejercicio.
Como explica la profesora Ceclila Grosman “el Código Civil permite la delegación del ejercicio de la responsabilidad parental al padre/madre afín por parte del progenitor conviviente por circunstancias específicas y en forma temporal. La delegación del ejercicio de la responsabilidad parental es una excepción que requiere de homologación judicial En este supuesto, el padre afín ejerce la responsabilidad parental con las atribuciones que tenía el progenitor delegante”.
El Código trata además de la custodia en caso de fallecimiento del padre/madre que tenga la guardia del hijo, atribuyéndose al progenitor(a) a fin sobreviviente, la posibilidad de asumir la custodia (art. 264.3), como también regula la cuestión de los alimentos (art. 676) y la guardia conjunta (art. 675), mejorando substancialmente la posición del progenitor a fin, en la exacta medida en que define mejor su situación relacionada al hijo a fin con una mayor participación en la vida del niño y no solo como un “cooperador” en la crianza..

6. Conclusión

La familia ensamblada es hoy una realidad social en los países occidentales. Su número aumenta exponencialmente por dos factores bastante claros: la posibilidad de disolución del casamiento, por medio del divorcio y la facilidad de constitución de nuevas familias a través de una unión convivencial de pareja.
Reciente investigación en Argentina señala que hay un divorcio cada dos matrimonios. El 45 % de las nuevas parejas tienen hijos de la unión anterior (EPH). El 55 % de los cónyuges o convivientes son jóvenes entre 30 a 49 años (Clarín, 17/8/2011).
En Brasil, no tenemos pesquisas recientes, el IBGE (instituto Brasileiro de Estadística) constató en 2010 que las familias reconstituidas representaban 16,3% de los matrimonios. Fue la primera vez que el instituto incluyó en censos de hogares brasileños preguntas sobre el origen de filiación de hijos encontrados en las diversas unidades familiares.
Otro dato importante en el Censo 2010, fue la constatación del aumento notable de familias constituidas de manera informal, las uniones de hecho, que crecieron en el período de diez años de 28,6% para 36,4% y representa más de 1/3 de los casamientos.
Se verifica entonces, tanto en Argentina como en Brasil, que la familia ensamblada es una realidad social presente de manera muy significativa em los dos países y el derecho no puede permanecer ajeno a esa realidad.
En Brasil todavía no tenemos reglas específicas sobre la familia ensamblada. La Argentina venció ese vacío legislativo con la aprobación del nuevo Código Civil. Lo mismo no se podrá decir de Brasil, donde este tipo de familia continuará sin una definición legal, dejando em las manos de los jueces, frente a cada caso concreto, la utilización de analogía, de costumbres y de principios generales de derecho como forma de resolver los conflictos derivados de ese nuevo tipo de relacionamiento familiar.

7. Bibliografía
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 Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil. Curriculum Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=AD4C54FF7CA71BB25B0BB14643D332F2

 MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – família e sucessões, v. 5, pp. 5-14.
 HERRERA, Marisa. Nuevas tendencias en el derecho de familia de hoy. Principios, bases y fundamentos. Primera parte. MJ-DOC-5595-AR | MJD5595, 7-nov-2011.
 SCOTTI, Luciana.El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas, p. 268.
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 A conmissão encabeçada por Miguel Reale, foi formada em 1969 e publica em 1973 o seu Anteprojeto de Código Civil, que é encaminhado pelo Governo ao Congresso Nacional, onde se transforma no Projeto de Lei n.º 634, de 1975. Algumas décadas depois, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, o Congresso retoma o seu exame e o aprova em 2002.
 GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstituídas: breve introdução ao seu estudo, p. 261.

 BARBERO, Omar. Código civil y comercial de la nación – Análisis doctrinal e jurisprudencial (Dirección Alberto Bueres), v. 2, p.806.
 GROSMAN, Ceclila.Exposição na aula de doctorado da Universdiade Buenso Aires en enero de 2013.
 Dados disponíveis em:  HYPERLINK “http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2240&id_pagina=1” http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2240&id_pagina=1, acesso em 30/03/13.

Autor: NEHEMIAS DOMINGOS DE MELO

Sumário: 1. A proteção jurídica constitucional da flora e da fauna e o destinatário da norma. 2. Os bens ambientais e sua natureza de direitos difusos. 3. Limitação constitucional ao direito de propriedade. 4. Da competência legislativa e administrativa. 5. Princípio da dignidade humana. 6. Bibliografia.

1. A proteção jurídica constitucional da flora e da fauna e o destinatário da norma

A tutela jurídica dos valores ambientais está consagrada na Constituição Federal em seu art. 225, caput, verbis:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Como leciona Celso Fiorillo, neste preceito constitucional está contido alguns aspectos importantes, dentre os quais, destacamos:
Que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos, cujo conteúdo do termo todos, deve ser entendido como a coletividade formada pelos brasileiros e estrangeiros aqui residentes nos termos do art. 5°, caput, da Constituição Federal.
Que esse mesmo meio ambiente é um bem de uso comum do povo, sendo, portanto um gênero de bem que se situa num ponto intermédio entre os bens particulares e os bens públicos.
Que é um bem essencial à sadia qualidade de vida, aí se identificando claramente que o destinatário da norma constitucional, somos todos nós.
Já no tocante a proteção jurídica da flora e da fauna, a Constituição é expressa, consagrado-a no inciso VII, do citado art. 225, verbis:

“Art. 225, VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”.

Assim, temos que a tutela protecionista do meio ambiente, nele incluída a fauna e a flora, é voltada para a satisfação das necessidades dos seres humanos. Quer dizer, o direito ambiental possui uma necessária visão antropocêntrica, sendo o homem o destinatário da proteção legal e, somente por vias reflexas, e que se protege as outras espécies.
Como preleciona Hugo Nigro Mazzilli, “a tutela dos seres vivos e da natureza em geral se faz em atenção ao sentimento de respeito que os serem humanos têm e devem mesmo ter em relação a todos os seres e todas as formas de vida que lhe deram origem ou lhe dão condições de subsistência, ou que aproveitam ao equilíbrio ecológico, necessário à preservação de seu próprio habitat”.
Conclui-se pois, que somente o homem é sujeito de direitos, de tal sorte que mesmo quando a norma, aparentemente, contemple direitos às coisas que não os homens (caso da proteção à fauna e flora, por exemplo), ela o faz tendo em vista o bem-estar e as necessidades da espécie humana.

2. Os bens ambientais e sua natureza de direitos difusos

Direitos ou interesses difusos, deve ser compreendido na perspectiva de sua titularidade que é transindividual, isto é, conferida a um número indeterminado e indefinido de pessoas, que fática e circunstancialmente estejam ligadas entre si e, de outro lado, pela indivisibilidade do objeto, quer dizer, é um bem que a todos pertence, mas não pertence com exclusividade a ninguém (ver art. 81, I da Lei n° 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor).
Na conceituação de Rodolfo de Camargo Mancuso “são interesses metaindividuais, que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessárias à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluído, dispersos pela sociedade civil como um todo, podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido”, que se caracteriza “pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço”.
No âmbito do direito ambiental, se deve entender por bem de interesse difuso todos os valores da natureza e todos os valores imprescindíveis à vida, tais como o ar, a água, e as terras e as matas preservadas; o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado; o espaço aéreo protegido; o subsolo, as nascentes, as jazidas e os repositórios naturais de riqueza; os sítios arqueológicos; o meio ambiente cultural e de trabalho; a fauna e a flora com suas espécies.
Conforme ensina Celso Fiorillo, trata-se de direito constitucional que não se reporta a pessoas individualmente consideradas, mas sim a uma coletividade de pessoas indefinidas; ou seja, está em face de um direito transindividual, cujos titulares são pessoas ligadas por circunstâncias de fato. Dessa forma, nos termos do art. 81, parágrafo único, I, da Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), para o direito positivo os bens ambientais possuem inequivocamente natureza jurídica de direitos difusos.
Anota ainda o ilustre mestre, com base em José Afonso da Silva, que o povo, portanto é quem exerce a titularidade do bem ambiental dentro de um critério adaptado à visão da existência de um ‘bem que não está na disponibilidade particular de ninguém, nem de pessoa privada nem de pessoa pública’. Assim, o bem ambiental criado pela Constituição Federal de 1988 é, pois, um bem de uso comum, a saber, um bem que pode ser desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionalmente assegurados.
Assim, o direito ambiental é um direito difuso, na exata medida em que cuida de interesses indivisíveis e insuscetíveis de personificação em sujeitos individualizados, sendo, portanto, um direito de toda coletividade.

3. Limitação constitucional ao direito de propriedade

Já se foi o tempo em que o direito à propriedade era um direito absoluto e ilimitado.
O nosso sistema jurídico, de índole capitalista, garante o direito de propriedade, porém esse direito deverá ser exercido tendo em vista a função social que a propriedade deve desenvolver (CF, art. 5°, XXII e XXIII). Nesse passo, cabe destacar posicionamento de Toshio Mukai de que “o princípio da propriedade privada (de sua garantia) só é legítimo e constitucional quanto à sua invocação, na medida em que seu uso estiver conforme os demais princípios, notadamente, o da sua função social”.
No mesmo diapasão, preceitua o novo Código Civil que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” (art. 1.228, § 1°).
Assim, o uso racional da propriedade é um dever de todos, e o uso e gozo da coisa somente pode se realizar de modo que atenda os interesses da coletividade em geral (e não apenas aos interesses privados do titular do domínio), sendo perfeitamente legítimo que as leis especiais imponham outras restrições ao uso da propriedade, tais quais as diretrizes fixadas na Lei de Política Ambiental (Lei nº 6.938/81), na Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/67), no Código Florestal (Lei nº 12.651/12), porque tudo isso se coaduna com os princípios constantes da nossa Constituição Federal, não só o previsto no art. 5°, XXIII, mas também o contido nos art. 170, III, que trata dos princípios gerais da ordem econômica e, principalmente, o art. 225, que tutela o meio ambiente.

4. Da competência legislativa e administrativa

A competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios é concorrente, tanto na atividade política quanto na administrativa, naquilo que visa proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (CF, art. 23, VI), preservar as florestas, a fauna e a flora (CF, art. 23, Vll) e, legislar sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, bem como de proteção ao meio ambiente e ao controle da poluição (CF, art. 24, VI).
Nesse aspecto cumpre papel fundamental ao município, pois é neste ente federativo onde a proteção, conservação e defesa do meio ambiente vai se realizar. A tutela à sadia qualidade de vida de que nos fala a Constituição, vai se materializar no município.
Não é por outro razão que o saudoso Prof. André Franco Montoro de longa data afirmava: “ninguém vive na União, ou no Estado, as pessoas vivem no município”.
Quando a Constituição Federal atribui ao município a competência para legislar sobre os assuntos de interesse local (art. 30, I), está se referindo aos interesses que atendem de imediato às necessidades locais, ainda que tenham repercussão sobre as necessidade gerais do Estado ou do País, de sorte a afirmar que o texto Constitucional deu importante relevo ao município, particularmente em face do direito ambiental, na exata medida em que é a partir dele que a pessoa humana poderá usar os denominados bens ambientais, visando a plena integração social, tudo com base na moderna concepção de cidadania.


5. Princípio da dignidade humana

Para exata compreensão do princípio da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, é preciso rememorar que os avanços têm sido, fruto da dor física e do sofrimento moral como resultados de surtos de violências, mutilações, torturas, massacres coletivos, enfim, situações aviltantes que fizeram nascer consciências e exigências de novas regras de respeito a uma vida digna para todos os seres humanos.
É preciso rememorar que com o fim da Segunda Guerra Mundial e, em face das atrocidades cometidas pelos dirigentes nazistas, houve uma tomada de consciência universal, espelhada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo como base uma razão jurídica de conteúdo ético universal, “fundada na garantia da intangibilidade da dignidade da pessoa humana, na aquisição da igualdade entre as pessoas, na busca da efetiva liberdade, na realização da justiça, e na construção de uma consciência que preserve integralmente esses princípios”.
No âmbito interno, importa destacar que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito pela Constituição Federal de 1988, foi a dignidade da pessoa humana, que, como consectário lógico, impõe a elevação do ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico, sendo-lhe atribuído o valor supremo de alicerce da ordem jurídica.
Em matéria ambiental, a própria Lei nº 6.938/81, em seu art. 2º, preceitua, que a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no país, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os princípios que são enumerados nos incisos.
Nesse cenário, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental da República, insculpido na Constituição Federal (art. 1º, III,), há de ser destacado e harmonizado com todos os demais dispositivos constantes da mesma, implícita ou explicitamente, tais como a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, a a ordem econômica, bem como com a defesa do dos direitos fundamentais da pessoa humana, destacando-se a inviolabilidade da vida.
Conclusão que exsurge é que se o homem tem direito ao meio ambiente equilibrado e sadio (CF, art. 225), este meio ambiente é pressuposto para a preservação da vida e da saúde, logo, não há como desvincular a proteção ao meio ambiente do princípio da dignidade da pessoa humana.

6. Bibliografia
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 4a. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro, 6ª. ed.. São Paulo: Saraiva, 2005.
_____. O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos, 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, 15ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
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MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado, 4ª. ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Manual de filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2004.
Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus,Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.


 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 11-15.
 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco, op. cit. pp. 16-19.
 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 129.

 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 136.
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